O segundo instrumento geral de uma Vida Santa

Jeremy Taylor

Que devemos almejar e projetar a glória de Deus em todas as nossas ações, sejam elas naturais ou escolhidas, é expresso por São Paulo: “quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus”[1]. Pela regra, quando a observamos, toda ação da natureza se torna religiosa e toda refeição é um ato de adoração, e terá sua recompensa em sua proporção, assim como um ato de oração. Abençoada seja a graça e a bondade de Deus, que, por infinito desejo de glorificar e salvar a humanidade, tornou as próprias obras da natureza capazes de serem consideradas atos de virtude, para que, durante toda a nossa vida, lhe prestemos serviço.

Essa graça é tão excelente que santifica a ação mais comum de nossa vida; e, no entanto, tão necessária que, sem ela, as melhores ações de nossa devoção são imperfeitas e cruéis. Pois aquele que ora por costume, ou que dá esmola atrás de louvores, ou jejua para ser considerado religioso, é apenas um fariseu hipócrita em seu jejum. Mas um fim sagrado santifica todas essas e todas as outras ações, que podem ser santificadas, distinguindo-as e tornado-as aceitáveis.

Pois, como conhecer o fim distingue um homem de um animal, escolher um bom fim o distingue de um homem mau. Ezequias repetiu suas boas ações em seu leito de enfermo e obteve o favor de Deus, mas o fariseu foi considerado insolente por fazer o mesmo porque este homem fez isso para censurar seu irmão, enquanto aquele o fez para obter misericórdia de Deus. Zacarias questionou com o anjo sobre sua mensagem e ficou sem palavras por sua incredulidade; mas a bem-aventurada Virgem Maria também questionou, e foi irrepreensível; porque ela inquiriu sobre o modo como seria feito, mas ele não acreditou no milagre; ele duvidou do poder de Deus ou da verdade do mensageiro; enquanto ela apenas questionou sua própria incapacidade. Foi isso que distinguiu o luto de Davi da exclamação de Saul; a confissão do Faraó daquela de Manassés; as lágrimas de Pedro, do arrependimento de Judas: “porque o louvor não está na ação realizada, mas na maneira de fazer”[2]. Se um homem visita seu amigo doente e observa seu travesseiro por causa da caridade, e por causa da sua antiga afeição, nós o aprovamos; mas se ele faz isso na esperança de legado, ele é um abutre e só observa a carcaça. As mesmas coisas podem ser honestas ou desonestas: a maneira de fazê-las e o fim do desejo fazem a separação.

A intenção sagrada está para as ações de um homem como a alma está para o corpo, ou a forma para sua matéria, ou a raiz para a árvore, ou o sol para o mundo, ou a fonte para um rio, ou a base para um pilar: pois, sem eles, o corpo é um tronco morto, a matéria é mole, a árvore é um bloco, o mundo é trevas, o rio é seco, o pilar se desmorona em ruína; e a ação é pecaminosa, ou inútil e vaidosa. O pobre fazendeiro que deu um prato de água fria a Artaxerxes foi recompensado com um cálice de ouro; e aquele que der o mesmo a um discípulo em nome de um discípulo terá uma coroa; mas se ele der água em contenda, quando o discípulo precisar de vinho ou de um tônico, sua recompensa será querer que a água esfrie sua língua.

Regras para nossas intenções

1. Em toda ação, reflita sobre o fim; e, ao empreendê-lo, considere por que você o faz e por que propõe a si mesmo uma recompensa e a suas ações como seu fim.

2. Comece toda ação em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; cujo significado é: 1) que tenhamos cuidado para não realizarmos a ação sem a permissão ou mandado de Deus; 2) que a projetemos para a glória de Deus, se não na ação direta, mas pelo menos em sua conseqüência; se não no particular, mas pelo menos em toda a ordem das coisas e incidentes; 3) para que seja tão abençoado que o que você pretende para propósitos inocentes e sagrados, não possa, por acaso, por abuso ou má compreensão dos homens, ser transformado em algum mal ou dar ocasião ao pecado.

3. Que toda ação de importância seja iniciada com a oração, para que Deus não apenas abençoe a ação, mas santifique seu propósito; e faça uma oferta da ação a Deus: ações santas e bem intencionadas são as melhores ofertas e presentes que podemos fazer a Deus; e quando Deus tem direito a eles, ele prefere manter o fogo sobre o altar brilhante e resplandecente.

4. No processo da ação, renove e reacenda seu propósito, através de breves referências a esses propósitos: “Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória, por amor da tua benignidade e da tua verdade”[3]; e considere: “Agora estou trabalhando na obra de Deus; eu sou Seu servo, estou em um emprego feliz, estou trabalhando nos negócios do meu mestre, não estou à minha disposição, mas estou usando os talentos dele, e todo o ganho deve ser dele”, pois, com certeza, como a glória é dele, então a recompensa será tua. Se trouxeres seus bens para casa cada vez mais, ele te fará governar sobre as cidades.

5. Tenha o cuidado de que, embora o altar imprima uma moldura santa, não permita que os pássaros venham e levem o sacrifício; isto é, não deixe que o que começou bem, e que foi destinado à glória de Deus, decaia e termine para teu próprio louvor, ou tua satisfação temporal, ou para um pecado. Uma história, contada para representar a vileza da falta de castidade, está bem iniciada; mas, se a tua ouvinte estiver satisfeita com a sua lábia, e começar a gostar mais da sua pessoa pela sua história do que não gostar do pecado, fique atento, para que esta agradável obra de ouro não desvalorize em prata e bronze e termine em feno ou barro, como Imagem da cabeça de Nabucodonosor; pois pelo seu fim terá seu nome e recompensa.[4]

6. Se algum evento acidental, que não foi inicialmente planejado por você, vier a acontecer, não deixe os seus propósitos, nem ceda; como se, contando uma história verdadeira, você pudesse enfraquecer seu inimigo, ou de algum modo fazê-lo; mas, quando a tentação for descoberta, coloque toda a tua aversão sobre isso.

7. Em toda ação religiosa solene, junte bons fins, para que a importância deles possa nutrir todos os seus afetos; e para que, quando algum deles cessar, a pureza de sua intenção possa ser sustentada por outro suprimento. Quem jejua apenas para domesticar um corpo rebelde, quando recebe um remédio, seja na graça ou na natureza, pode ficar tentado a deixar de jejuar. Mas, tenha em seu jejum a intenção de mortificar todo apetite indisciplinado e acostumar-se a suportar o jugo do Senhor, o desprezo pelos prazeres da carne e da bebida, a humilhação de todos os pensamentos mais selvagens, obediência e humildade, austeridade e caridade, e como auxílio à devoção e ao ato de arrependimento; aconteça o que acontecer, terá motivos suficientes para fazê-lo continuar com seu propósito e santificá-lo. E certo: quanto mais os bons fins forem projetados em uma ação, mais graus de excelência o homem obterá.

8. Se alguma tentação de estragar seu propósito acontecer em um dever religioso, não omita a ação no momento, mas esforce-se para retificar sua intenção e mortificar a tentação. São Bernardo nos ensinou esta regra: pois quando o diabo, observando-o pregar excelentemente e o benefício da sua pregação para seus ouvintes o tentava a glória vã, esperando que o bom homem, para evitar isso, deixasse de pregar, ele dava somente esta resposta: “Não comecei por ti, nem por ti concluirei isto”.

9. Em todas as ações de longa duração, deixe sua intenção santa e piedosa ser real; isto é, por uma oração ou ação especial, por um ato peculiar de resignação ou oferta dada a Deus; mas em ações menores tenha uma intenção habitual piedosa; isto é, que seja incluído em seus cuidados gerais que nenhuma ação tenha um fim mal; e que seja dito em suas orações gerais, que você se oferece e tudo o que faz é para glória de Deus.

10. Nem toda finalidade temporal corrompe sua intenção, mas apenas 1) quando contrariar qualquer vontade de Deus; ou 2) quando se destinar principalmente a uma ação religiosa. Pois, às vezes, um fim temporal faz parte de nosso dever; e tais são todas as ações de nosso chamado, seja nosso emprego religioso ou civil. Somos ordenados a prover nossa família; mas se o ministro ou sacerdote tomar sobre ele aquele santo chamado por fins ambiciosos ou cobiçosos, ou não designar a glória principalmente e especialmente a Deus, ele poluiu suas mãos e seu coração; e o fogo do altar se apaga, ou sairá apenas uma fumaça desagradável. E é uma grande indignidade preferir o interesse de uma criatura antes dos fins de Deus, o Todo-Poderoso Criador.

Mas, porque muitos casos podem acontecer, nos quais o coração de um homem pode enganá-lo, e ele pode não saber muito bem o que está em seu próprio espírito, pelos sinais descritos a seguir, podemos melhor julgar se nossas intenções são puras e nossos propósitos sagrados.

Sinais de nossa pureza de intenções

1. É provável que nossos corações estejam alinhados com Deus e nossas intenções sejam inocentes e piedosas, se empreendermos ações religiosas ou da vida civil com um carinho proporcional à qualidade da obra; que agimos nos assuntos temporais com um desejo não maior do que nossa necessidade; e que, nas ações da religião, somos zelosos, ativos e operacionais, até onde a prudência permitir; mas, em todos os casos, que valorizamos um desígnio religioso antes de um temporal (secular), quando, de outro modo, eles estão em ordem igual aos seus diversos fins: isto é, o que for necessário para que a saúde de nossa alma seja mais estimada do que é a do corpo; e as necessidades, as necessidades indispensáveis do espírito, sejam atendidas antes das necessidades da natureza, quando necessárias em suas diversas circunstâncias; ou mais claro ainda, quando escolhemos qualquer inconveniente temporal, em vez de cometer um pecado, e quando escolhemos cumprir um dever, em vez de obter lucro. Mas aquele que faz sua recreação ou seu trabalho com alegria, prontidão, prontidão e disposição, e as obras religiosas de maneira lenta, sem graça e sem apetite. e o espírito se move como as carruagens do faraó quando as rodas estavam desligadas, isto é um sinal de que seu coração não está bem com Deus, e que se apega demais ao mundo.

2. É provável que nossos corações sejam puros e nossas intenções imaculadas, quando não solicitamos a opinião e/ou a censura dos homens: apenas quando cumprimos nosso dever sendo aceitos por Deus. Pois nossos olhos certamente estarão fixos ali, de onde esperamos nossa recompensa; e se desejamos que Deus nos aprove, é um sinal de que fazemos o trabalho dele, e esperamos que ele seja nosso recompensador.

3. Aquele que se dá tão bem em particular entre Deus e sua própria alma, como em público, nos púlpitos, nos teatros e nos mercados, prestou um bom testemunho de que seus propósitos são cheios de honestidade, nobreza e integridade. Pois o que Helcana disse à mãe de Samuel: “Não sou melhor para ti do que dez filhos?” É certamente verificado em relação a Deus; que ele, que deve ser nosso juiz, é melhor que dez mil testemunhas. Mas aquele que teria sua virtude publicada, estuda não a virtude, mas a glória. “Ele não é apenas aquele que não estará somente sem elogio: mas ele é um homem justo que faz justiça, quando fazer isso é infame; e ele é um homem sábio que se deleita com um mau nome que é bem adquirido”. E, de fato, esse homem tem uma estranha avareza, ou loucura, que não se contenta com essa recompensa, que agrada a Deus. E veja o que ele ganha com isso. Quem faz boas obras para louvor ou fins seculares, vende uma jóia inestimável por uma ninharia; e aquilo que compraria o céu para ele, dele se separa pelo fôlego do povo; que, na melhor das hipóteses, é apenas ar, e que nem sempre é saudável.

4. É bom, também, quando não somos solícitos ou preocupados com relação ao efeito de todas as nossas ações; mas o fato de ser o primeiro a orar a Deus, colocando-se à sua disposição: pois, caso o evento não responda aos nossos desejos ou à eficácia do instrumento, não resta mais nada senão a honestidade de nossos fins; que é o mais provável que garantimos, quanto mais somos indiferentes em relação ao sucesso. Tiago converteu apenas oito pessoas, quando ele pregou na Espanha; e nosso abençoado Salvador converteu menos do que seus próprios discípulos; e se as tuas obras se mostrarem despropositadas, se te afligires muito com isso, é certo que não te consideraste seguro de uma recompensa pela tua intenção; no que tu poderias confiar se fosses puro e justo.

5. Ele ama a virtude pelo amor de Deus e por si mesma a ama e a honra onde quer que seja vista; mas aquele que tem inveja ou raiva de uma virtude que não é dele, da perfeição ou excelência de seu próximo, não é cobiçoso da virtude, mas de sua recompensa e reputação, e então suas intenções são profanadas. Foi uma grande ingenuidade de Moisés querer que todas as pessoas fossem profetas; mas se ele tivesse projetado sua própria honra, teria profetizado sozinho. Mas aquele que deseja apenas que a obra de Deus e da religião continue, fica satisfeito com quem quer que seja o instrumento.

6. Aquele que despreza o mundo, e todas as vaidades advindas dele, tem em si o melhor juiz e a mais segura intenção, porque ele se mantém distante da tentação. Todo grau de mortificação é um testemunho da pureza de nossos propósitos; e no mesmo grau que desprezamos o prazer sensual, ou as honras seculares ou a reputação mundana, inclinaremos nosso coração direto à religião e aos desígnios espirituais.

7. Quando não ficamos apreensivos quanto aos instrumentos e meios de nossas ações, mas usamos os meios que Deus colocou diante de nós, com resignação, indiferença e gratidão, temos um bom sinal de que estamos bem mais atentos em alcançar a glória de Deus do que nossa própria conveniência ou satisfação temporal. Aquele que é indiferente se serve a Deus na riqueza ou na pobreza, é mais um buscador de Deus do que de si mesmo; e aquele que joga fora um bom livro porque não é curiosamente dourado, tem mais curiosidade de agradar a seus olhos do que trazer para si seu conhecimento e sua compreensão.

8. Quando um fim secular se assemelha a um espiritual, e finge estar subordinado a ele, falha e é derrotado, se pudermos nos alegrar com isso, para que a glória de Deus seja assegurada e também os interesses da religião, isto é um grande sinal de que nossos corações estão certos e nossos fins são prudentemente projetados e ordenados.

Finalmente, quando nossas intenções são assim equilibradas, regulamentadas e discernidas, podemos considerar:

  1. Que este exercício é de eficácia tão universal em todo o curso de uma vida santa que é como a alma para cada ação sagrada e deve ser previsto em toda empresa; e é, por si só, suficiente para fazer com que todas as ações naturais e indiferentes sejam adotadas na família da religião.
  2. Que existem algumas ações, que geralmente são consideradas partes de nossa religião, que, ainda assim, são tão relativas e imperfeitas que, sem a pureza da intenção, elas se degeneram: e, a menos que sejam direcionadas e prossigam aqueles propósitos para os quais Deus as designou, elas se tornam ações comuns seculares ou pecaminosas. Assim, a esmola é para a caridade, o jejum para a temperança, a oração é para o culto, a humilhação é para a humildade, a austeridade ou sofrimento é para a virtude da paciência; e quando essas ações fracassam em seus diversos fins, ou não são direcionadas a seus próprios propósitos, a esmola é gasta, o jejum é um problema impertinente, a oração é apenas labial, a humilhação é apenas a hipocrisia, o sofrimento é apenas a irritação; pois assim eram as esmolas do fariseu, o jejum de Jezabel, a oração de Judá reprovada pelo profeta Isaías, a humilhação de Acabe, o martírio dos hereges; onde nada é dado a Deus senão o corpo, ou as formas de religião; mas a alma e o poder da piedade estão em falta.
  3. Devemos considerar que nenhuma intenção pode santificar uma ação profana ou ilegal. Saul, o rei, desobedeceu aos mandamentos de Deus e poupou o gado de Amaleque para reservar o melhor para o sacrifício; e Saulo, o fariseu, perseguiu a igreja de Deus com o objetivo de servir a Deus; e os que mataram os apóstolos também tiveram bons propósitos, mas fizeram ações não consagradas. Quando há tanto a verdade na eleição, quanto a caridade na intenção; 19 quando vamos a Deus de sua própria escolha ou aprovação, então nosso olho é único, nossas mãos estão limpas e nossos corações são puros. Mas quando um homem pratica o mal para que o bem venha dele, ou o bem para um propósito maligno, esse homem faz como aquele que se revira em espinhos para poder dormir facilmente; assa-se no fogo para saciar a sede com o próprio suor; ele vira o rosto para o leste para poder ir dormir com o sol. Termino com o dizer de um pagão sábio: “Ele deve ser chamado de mal, que é bom apenas para o seu próprio bem. Não pense em quão cheias suas mãos você apresenta para Deus, mas em quão puras elas estão. Muitos cessam do pecado apenas por medo, não por inocência ou amor à virtude” [5] e eles ainda não devem ser chamados de inocentes, mas tímidos.

*Este é o segundo capítulo do livro The Rule and Exercises of Holy Living [Regras e Exercícios para uma Vida Santa, 1650] 

Tradução: Eduardo Vasconcellos


[1] 1 Coríntios 10:31

[2]  Sêneca

[3] Salmos 115:1

[4] Qui furatur ut maechetur, maechus est magis quam fur. Aquele que rouba para ter uma amante é mais do que um ladrão.

[5] Publius Mimus

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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