O nome de Adam Clarke é sinônimo de sabedoria bíblica e com razão. Seu Comentário e Notas Críticas sobre toda a Bíblia foi concluído em 1826 e representou mais de 30 anos de intensa pesquisa e redação. Outros estudiosos escreveram comentários sobre toda a Bíblia, mas o Comentário de Clarke é um dicionário de ensino bíblico, oriental, filosófico e clássico inigualável por qualquer outro. Quando lembramos que todo esse trabalho foi feito enquanto Clarke era um pregador Wesleyano itinerante e que nunca teve uma hora de ajuda de secretariado em sua vida, ele, junto com todas as suas outras publicações, indica uma prodigiosa conquista literária.

Clarke era um erudito wesleyano e um fervoroso e convicto expositor da santidade escriturística. Nenhuma apreciação do patrimônio de santidade pode ignorar Adam Clarke. Seguindo os irmãos Wesley e John Fletcher, Clarke é o próximo nome na ilustre linha de pregadores de santidade e estudiosos desde John Wesley até o presente. É inteiramente apropriado destacar a contribuição de Adam Clarke para a teologia da santidade nas Escrituras. Antes de examinar seu ensinamento com algum detalhe, é necessário um breve esboço de sua vida e obra.

Adam Clarke nasceu no condado de Londonderry, na Irlanda do Norte, em 1760 e se converteu em 1779 após ouvir um pregador metodista. Três anos depois, ele saiu de casa para freqüentar a escola de Wesley em Kingswood, Bristol, Inglaterra. Cinco semanas depois, ele foi designado para o seu primeiro circuito de pregações e durante os 50 anos seguintes ele foi um pregador Wesleyano autodidata que, entre outras realizações acadêmicas, se tornou mestre de pelo menos 10 idiomas, antigos e modernos.

Ele serviu em 24 circuitos metodistas na Inglaterra e Irlanda, trabalhou por 3 anos nas Ilhas do Canal, foi três vezes presidente da Conferência Metodista Inglesa e quatro vezes presidente da Conferência Metodista Irlandesa. Ele dedicou centenas de horas de trabalho à recém-fundada Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira e 10 anos de meticuloso trabalho de edição e coleção de documentos estatais. Este último trabalho foi um empreendimento colossal. Exigiu o mais exato exame, decifração e classificação dos Documentos Estaduais Britânicos de 1131 a 1666. A pesquisa foi realizada em 14 locais diferentes, incluindo a Torre de Londres, os Arquivos Westminster de Londres e a Biblioteca da Universidade de Cambridge. Em 1808, a Universidade de Aberdeen conferiu a Adam Clarke o grau honorário de LL.D., a mais alta honra acadêmica da universidade.

Assim como seu Comentário, as publicações de Clarke chegaram a 22 volumes, incluindo Memoriais da Família Wesley, Reflexões sobre o Ser e Atributos de Deus, Os Costumes dos Antigos Israelitas, 4 volumes de sermões, 3 volumes de miscelânea intitulados Pedaços Destacados, um volume sobre missões cristãs, uma visão concisa da sucessão de literatura sagrada e um dicionário bibliográfico. A produção literária de Clarke foi fenomenal quando se leva em consideração que ele era um pregador itinerante em tempo integral.

Um olhar no registro dos 24 circuitos metodistas que ele serviu entre 1782 e 1832 mostra que seu domicílio mais longo em um lugar era quatro anos, ainda que seu deslocamento de lugar a lugar aproximadamente a cada dois anos não parece ter interferido em sua leitura, escrita e publicação. Ele foi eleito membro de seis das sociedades mais eruditas de sua época, incluindo a Antiquarian Society, a Royal Asiatic Society e a Royal Irish Academy. Apesar de todas as distinções dadas a ele, Clarke permaneceu um fiel pregador Wesleyano e um crente devoto e humilde. “Eu adoro aprender”, escreveu ele certa vez, “aprendi de homens sábios; com a companhia dos grandes e dos bons, fico sempre feliz. Mas infinitamente acima de todos estes e todos os outros prazeres possíveis, eu me glorio em Cristo – vivendo em mim e reinando e me ajustando para o Seu céu”.

 

 

Clarke era um pregador de raros poderes e dons e, particularmente em seus últimos anos,ele pregou para igrejas lotadas. Para o seu ministério de púlpito, ele trouxe todo o calor de sua educação celta e todos os vastos recursos de seu aprendizado enciclopédico. Essencialmente um pregador textual, ele fez pouca preparação formal antes de subir no púlpito – um método que nós, mortais inferiores, não deveríamos imitar! “Não posso fazer um sermão antes de subir no púlpito”, confessou a seu amigo, Robert Carr Brackenbury, “portanto,sou obrigado a depender da sabedoria do Senhor. Li muito, escrevo muito pouco,mas me esforço para estudar”. “Eu… me esforço para estudar” -esse era o segredo do sucesso de Clarke, tanto como pregador quanto como escritor.

Um verdadeiro Briareu[1] em suas muitas realizações, ele explorou todas as vias disponíveis de conhecimento, especialmente a lingüística, a científica e a histórica. Ao aconselhar um jovem pregador metodista sobre seus estudos, Clarke afirmou:”Um pregador metodista deve saber tudo. O conhecimento parcial sobre qualquer ramo da ciência ou do negócio é melhor do que a ignorância total … O velho ditado de ‘muitos ferros no fogo’ contém uma mentira abominável. Você não pode ter muitos ferros – atiçador, pinças e tudo, e manter a todos eles”. Foi o conselho que ele seguiu antes de dar aos outros. Ao visitar Liverpool, no norte da Inglaterra, em 1832, ele contraiu a mortal cólera asiática e morreu dela em sua casa em Londres em 26 de agosto.

Adam Clarke era pregador e estudioso do movimento de santidade. Ele estava entusiasmado e comprometido com a doutrina e a experiência metodista e particularmente com a compreensão de Wesley a respeito da perfeição cristã. Em um sermão pregado em Filipenses 1:27-28,intitulado “Pregador Apostólico”, ele explicou a santidade cristã:

“Todo o desígnio de Deus era restaurar o homem à sua imagem, e elevá-lo das ruínas de sua queda; em uma palavra, torná-lo perfeito; apagar todos os seus pecados, purificar sua alma e enchê-lo de toda santidade, de modo que nenhum temperamento profano, desejo maligno, ou afeição ou paixão impura, se aloje ou tenha qualquer parte dentro dele. Esta é apenas a verdadeira religião, ou perfeição cristã, e uma salvação menos do que isso seria desonrosa para o sacrifício de Cristo e a operação do Espírito Santo (…) Chame-a pelo nome que quiser, ela deve implicar o perdão de toda transgressão e a remoção de todo o corpo do pecado e da morte. Isso, então, é o que eu peço, oro e recomendo calorosamente a todos os verdadeiros crentes, sob o nome de perfeição cristã”.

Pregando em Efésios 3:14-21, Clarke interpretou a frase “que sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (v.19) como descritiva da experiência da salvação plena. “Ser cheio de Deus é uma grande coisa, ser preenchido com a plenitude de Deus é ainda maior; ser cheio de toda a plenitude de Deus é o maior de todos. É (…) ter o coração esvaziado e purificado de, todo pecado e impureza, e estar cheio de humildade, mansidão, gentileza, bondade … e amor a Deus e ao homem”.

Clarke sabia que alguns cristãos se opunham à doutrina wesleyana da inteira santificação porque consideravam que nenhum homem pode ser totalmente salvo do pecado nesta vida. Eles mantêm a morte como a completa libertação de toda a corrupção e o destruidor final do pecado como se isso fosse revelado em todas as páginas da Bíblia! Considerando que não há uma passagem no volume sagrado que diz tal coisa! Se isso fosse verdade, então a morte, longe de ser o último inimigo, seria o último e melhor amigo, e o maior de todos os libertadores. É o sangue de Jesus que purifica de toda injustiça.

Outro argumento familiar contra a perfeição cristã era a afirmação de que o pecado interior humilha os crentes e os mantêm penitentes. Clarke respondeu: “O orgulho é da essência do pecado… e a raiz de onde flui toda a obliqüidade moral. Como então o orgulho pode nos humilhar?… O coração do qual ele [o orgulho] é expulso tem humildade, mansidão e gentileza de Cristo implantado em seu lugar”.

Para o argumento adicional de que um cristão é certamente humilhado pela sensação de pecado interior, Clarke respondeu: “Eu concedo que os que vêem e sentem e deploram seu pecado interior são humilhados. Mas é o pecado que humilha? Não. É a graça de Deus que mostra e condena o pecado que nos humilha… Nunca nos humilharemos sob o sentido de pecado interior até que o Espírito de Deus o leve para a luz e nos mostre não apenas sua horrível deformidade, mas sua hostilidade a Deus, e Ele manifesta isto para que possa removê-lo”.

Pregando por mais de 30 anos após a morte de Wesley, Clarke viu esta gloriosa doutrina exemplificada por uma série de metodistas professos. Respondendo à objeção de que esse ensinamento produziu justiça própria em seus professores, Clarke testificou: “Ninguém que faz tal acusação jamais recebeu essa graça. Ele é um hipócrita ou um auto-enganador. Aqueles que a receberam…, o amor de Deus,de todo o coração, amam até os seus inimigos… No esplendor da santidade de Deus, eles se sentem absortos… Não tem sido pouca misericórdia para mim que,no curso de minha vida religiosa, eu tenha me encontrado com muitas pessoas que professavam que o sangue de Cristo as salvara de todos os pecados e cuja profissão era mantida por uma vida imaculada, mas eu nunca conheci um deles que não fosse do espírito acima descrito: eram homens da mais forte fé, o mais puro amor, as mais sagazes afeições, as vidas mais obedientes e as mais úteis na sociedade”.

Adam Clarke escreveu, pregou e interpretou a doutrina da inteira santificação com todo o seu domínio das Escrituras, especialização lingüística e ampla leitura teológica, mas há uma característica de sua apresentação que merece mais atenção. Ele não apenas acreditava que era uma doutrina escriturística e que era teologicamente correto – ele reforçou e explicou e defendeu-a com toda a paixão de um evangelista. Sempre que tocava no assunto, ele tinha como preocupação dominante não apenas que os cristãos acreditassem e fossem persuadidos de sua veracidade, mas que eles pudessem pessoalmente reivindicar a experiência,entrar nela, vivê-la, apreciá-la e testificar dela.

“Se os homens gastassem tanto tempo fervorosamente clamando a Deus, isto é, para santificá-los plenamente, quanto gastam em desacreditar esta doutrina, que estado glorioso da igreja deveríamos em breve testemunhar! Esse momento é quando podemos ser esvaziados do pecado, ficar cheios de santidade e tornar-nos verdadeiramente felizes. A perfeição do sistema do evangelho não é que ele faça concessões ao pecado, mas que faça uma expiação por ele, não que tolere o pecado, mas que o destrua. Que todos os que conservam a doutrina apostólica pressionem cada crente a prosseguir até a perfeição e esperem ser salvos, enquanto estão aqui embaixo, na plenitude da bênção do evangelho de Jesus. Cansado dessa mente carnal que é inimizade contra Deus, pode ser feliz enquanto tu é profano? Levante-se, pois, e seja batizado com maior efusão do Espírito Santo! Leitor, é direito inato de todo filho de Deus ser purificado de todo pecado, manter-se limpo das manchas do mundo, e assim viver de modo a nunca mais ofender seu Criador. Todas as coisas são possíveis àquele que crê, porque todas as coisas são possíveis ao sangue infinitamente meritório e ao espírito energético do Senhor Jesus”.

Certamente não é fora de lugar notar que a doutrina que Adam Clarke defendeu tão fervorosamente encontrou expressão rica em sua própria vida. Henry Moore, íntimo confidente de John Wesley e Adam Clarke, disse sobre o último:”Nossa conexão, acredito, nunca conheceu uma vida mais irrepreensível do que a do Dr. Clarke”.

Em vista da exposição clara e entusiasta de Clarke da perfeição cristã, não é de surpreender que a crítica mais séria de seu ensinamento tenha vindo do”movimento de santidade”. Clarke enfatizou quase exclusivamente a fase instantânea da santificação e negligenciou bastante a fase de crescimento.”Em nenhuma parte das escrituras somos direcionados a buscar a santidade gradativa. Devemos vir a Deus também para uma purificação instantânea e completa de todo pecado, e para um perdão instantâneo. Nem o perdão gradativo nem a purificação seriada existem na Bíblia”.

O ensinamento de Clarke muitas vezes é descrito como “à margem” do”equilíbrio teológico” de John Wesley. Mas essa crítica é bastante enganosa. Normalmente refere-se apenas a uma breve passagem do capítulo intitulado “Inteira Santificação” na antologia de Samuel Dunn sobre o ensinamento de Clarke, intitulada Teologia Cristã. Esse capítulo é uma compilação de vários escritos de Clarke sobre santidade cristã, e o texto completo dos originais precisa ser estudado antes que um julgamento tão amplo seja feito em apenas três sentenças. No extrato dado, Clarke está falando exclusivamente de entrar na bênção, uma graça tão instantânea quanto a justificação. Wesley ensinou essa verdade idêntica e dizer que a reiteração de Clarke colocou em risco o “equilíbrio teológico” Wesleyano é bastante forte. E por que não citar a próxima frase de Clarke? “É quando a alma é purificada de todo pecado que pode crescer adequadamente na graça e no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo”. E por que ignorar uma passagem anterior? “Aquele que continua a acreditar, amar e obedecer, crescerá em graça e aumentará continuamente no conhecimento de Jesus Cristo. A vida de um cristão é um crescimento”.

O ensino de Clarke sobre a inteira santificação é completamente wesleyano; na verdade, Clarke segue mais John Wesley do que qualquer outro de seus teólogos contemporâneos e, mais tarde, metodistas – John Fletcher, Richard Watson, WBPope, etc. Clarke argumenta, como Wesley, que em um momento o coração do crente pode ser purificado de todo pecado e cheio da plenitude de Deus. Após esta crise da graça, há um crescimento contínuo na vida inteiramente santificada. É isso que o autêntico wesleyanismo sempre ensinou. Aqueles que querem criticar Clarke aqui realmente devem voltar ao texto original de seus escritos, em vez de julgar prematuramente extratos isolados. Longe de jogar o ensino de Wesley para”fora do centro”, Clarke reforçou, reafirmou e revitalizou o”grande depósito” de Wesley – e por essa razão, e outras, Adam Clarke inspira os pregadores da santidade hoje.

Herbert McGonigle
Professor de História da Igreja,
British Isles Nazarene College, Manchester, Inglaterra


[1] Briareu (em grego clássico: Βριάρεως; transl.: Briáreos , lit. “vigoroso”) ou Egeão (em grego clássico: Αἰγαίων; transl.: Aegaeon , lit. “bode do mar”).

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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