Por Eduardo Vasconcellos

A teologia bíblica é rica em referências que enfatizam a experiência humana como algo necessário e que produz benefícios espirituais. Mas há uma tensão que sempre rodeia a vida do crente e a natureza do relacionamento com Deus que resulta da exposição externa de alguma mudança que aconteceu no seu interior. Nos primeiros anos da Igreja, vimos como os israelitas sobrepuseram a circuncisão ao sacrifício de Cristo até o momento que Paulo indagou: “recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?” [Gl 3.2-3]

Os judeus eram naturalmente circuncidados e aparentemente apenas o sinal externo existia. Quando as gerações posteriores apostataram, mas quiseram manter o sinal, Moisés [Dt 10.16], e, posteriormente, Jeremias [Jr 4.4] exortou-os: “Circuncidai-vos ao Senhor, e tirai os prepúcios do vosso coração, ó homens de Judá e habitantes de Jerusalém”. “Lava o teu coração da malícia, ó Jerusalém” [v. 14]. É presumível que essa seria a maneira correta de mostrar a graça interior: um coração quebrantado e puro. Paulo trata do mesmo assunto com os Coríntios: “é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração” [2 Co 3.3].

A adoração externa é trabalho perdido, sem um coração devotado a Deus

Quando se refere aos Meios da Graça, Wesley escreve inicialmente que não se pode supor que esses homens santos e veneráveis pretenderam alguma coisa a mais, a princípio, do que mostrar que aquela religião exterior não valia a pena, sem a religião do coração. Contudo, isso não significa que ele despreze a “mudança exterior”. Ele entende o “metodista” como aquele cristão que busca a inteira santificação, do coração e da vida, sendo tão tenaz da santidade interior, como qualquer místico; e, da santidade exterior, como qualquer fariseu.[[1]]

Para o Pai do Metodismo, o novo nascimento é um nascimento no Espírito e isso implica em mudanças tanto exteriores como da alma.

Não apenas uma mudança exterior,como da bebedeira à sobriedade; do roubo, ou furto para a honestidade (este é o conceito pobre, estéril, e miserável daqueles que nada conhecem da religião verdadeira); mas uma mudança interior, do temperamento iníquo para todo temperamento santo, — do orgulho para a humildade; da impetuosidade para a mansidão; da impertinência e descontentamento para a paciência e resignação; em uma palavra: da mente mundana, sensual, e diabólica, para a mente que estava em Jesus Cristo.[2]

E isso está diretamente relacionado com seu entendimento sobre o sacramento, uma expressão dos meios da graça, de maneira que este é “um sinal exterior da graça interior, e os meios por onde nós recebemos o mesmo”. Assim chegamos a sua definição: sinais exteriores ordenados por Deus para serem canais da sua graça preveniente, justificadora e santificadora.

Quando escreveu seus “Conselhos para as pessoas chamadas Metodistas”, Wesley insistiu que eles constituem um grupo que de forma contínua e tenaz insiste na necessidade absoluta da santidade universal, tanto no coração como na vida; no amor alegre a Deus e paz, “na evidência sobrenatural das coisas não vistas”, “na inspiração do Espírito Santo para produzir qualquer bom pensamento, palavra ou ação”, que insistem “nas formas externas de adoração”.

Parece que Wesley se esforça para estabelecer um selo sobre os metodistas: um povo que produz manifestações sobrenaturais com formas externas e inspiradas pelo Espírito.

Dessa maneira, um sinal externo poderia estar relacionado a uma graça interna se o Espírito Santo fosse o artífice desse trabalho. Se pudéssemos estabelecer esse princípio, evitaríamos problemas de compreensão relacionados a uma suposta eficácia ou eficiência do “meio”. Eu penso que a comunicação efetiva da graça de Deus através dos sacramentos resulta de uma efetiva sujeição ou percepção (sincera, verdadeira) por parte do homem. E se o Espírito Santo testifica [Rm 8.16] a todos que o Espírito de Deus habita em nós [Rm 8.9] não resta dúvida de que a graça foi manifestada de forma eficaz.

Mas isso não é tão simples como parece. Aprofundando o debate, a teologia perguntará se os sacramentos atuam ou não ex opere operato – se o seu funcionamento eficaz depende ou não apenas da presença da fé no participante, mas também da obra da fé. A resposta de Wesley vai além do “sola fides” e por isso ele valoriza os meios da oração, da leitura e meditação da Palavra de Deus, do batismo e da participação na Ceia do Senhor. Contudo, uma ação meramente humana estará muito distante do ideal.

Embora Wesley entenda que a graça se manifeste para que o relacionamento aconteça pelo “meio”, a ação do Espírito é fundamental nessa relação. Ele explica: “os meios exteriores, quaisquer que sejam eles, se forem separados do Espírito de Deus, não podem favorecer, afinal; não pode conduzir, em algum grau, tanto o conhecimento, quanto o amor de Deus”.[3] Desse modo, segundo esclarece Maddox, surge uma mediação “espiritual” da graça através do ato de ter comunhão porque “apesar de Cristo ser a causa meritória da graça provida à humanidade, Ele não é a causa eficiente pela qual ela é conferida ao homem. Esta causa eficiente (ou poder), no sentido mais apropriado, é a Presença do Espírito Santo”. [[4]]

Esta foi uma preocupação de Wesley. Para ele, “os meios não têm poder intrínseco”, isto é, “separados de Deus são como uma folha seca”. Portanto, a mera ação é inútil. “Não há poder para salvar, somente no Espírito de Deus”. Na prática, Wesley aconselha: “usando todos os meios, busque somente a Deus, olhando apenas para o poder de seu Espírito e os méritos de seu Filho”. As ordenanças exteriores de Deus são muito benéficas quando elas progridem na santidade interior.

Presença e caráter de Deus através da sua graça

Situado num contexto anglicano, Wesley ampliou a comunicação efetiva da graça para além dos meios presentes na adoração tradicional e incluiu os meios próprios dos metodistas como as reuniões de classe, as festas de amor e os cultos de renovação da aliança.

Henry Knight argumenta que essa expectativa dupla sobre a graça reflete a preocupação bifocal de Wesley de que as pessoas experimentarão não só a Presença de Deus (que as fortalece), mas também a identidade ou caráter de Deus (que fornece o padrão para suas vidas)[5]. Do ponto de vista de Knight, Wesley adotou os meios metodistas porque estes eram tipicamente mais eficazes em despertar uma abertura para a Presença de Deus do que os meios anglicanos tradicionais, embora dependesse do meio tradicional para fornecer descrições “objetivas” do caráter de Deus como contrapeso às apropriações antinomianas da Presença de Deus.

Mesmo assim, Wesley protesta veementemente contra a teologia tradicional que, segundo ele, “é um erro de conseqüência tão perniciosa para as almas dos homens; porque direta e naturalmente tende a impedir a obra interior de Deus em todas as etapas” da vida cristã. Ele explica:

Por exemplo: Está um homem descuidado e indiferente, completamente morto em delitos e pecados? — Exorta-o, então (suponha que ele é da sua opinião), a cuidar de sua alma imortal. “Eu cuido!”, diz ele. “O que significa meu cuidado? Por que, o que deve ser, deve ser. Se eu for um eleito, devo ser salvo; e se eu não for, devo ser condenado”. (…) — Pressione-o então para despertar o dom que está nele; para operar sua própria salvação com temor e tremor. “Ai”, diz ele, “o que posso fazer? Você sabe, o homem não pode fazer nada”. Se você perguntar: “Mas você não deseja a salvação? você não está disposto a ser salvo”? “Pode ser que sim”, responderá ele, “mas Deus me dará essa vontade no dia do seu poder”.[6]

Em sentido inverso, Wesley exorta o tempo todo à busca da presença do Espírito através da oração e da leitura da Palavra. Quem quer receber a graça deve buscá-la pela oração, dizia, apontando a referência onde Jesus ensinou tal coisa, em Mt 7.7-8 e Mt 13.46. Ele insiste que Jesus ensinou a pedir a presença do Espírito em oração [Lc 11,13]. E que estes a que Jesus se referiu, “ainda não haviam recebido o Espírito Santo, e ainda assim nosso Senhor os aconselha a usar este meio e promete-lhes que [a oração] será eficaz”. Wesley também lembra que a oração pode pedir a sabedoria divina (Tg 4.2) e acrescenta: “Mas peça com fé, do contrário, não pense que você receberá qualquer coisa do Senhor.”

Sobre a dedicação ao estudo, Wesley cita o texto de João 5: 5-9: “Você examina as Escrituras”, ele diz aos judeus incrédulos, “eles são os que testificam sobre mim.” E para esse propósito ele os aconselha a escrutinar as Escrituras, para que eles acreditassem nele. De acordo com Wesley, “das palavras de Paulo a Timóteo, aprendemos que este é um meio pelo qual Deus não apenas dá, mas também confirma e desenvolve a verdadeira sabedoria”. [2 Ti 3,15]

Crescimento na graça e conversão

Wesley garantiu que participar da Ceia periodicamente promovia o crescimento na graça de Deus daqueles que assim o desejavam. “Que este seja um meio habitual de receber a graça de Deus, é evidenciado pelas palavras do Apóstolo que estão no seguinte trecho: “o cálice de bênção, que abençoamos, não é a comunhão (ou seja, a comunicação) do sangue de Cristo? O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo?” [1 Co 10.16]

Ele acreditava que participar da comunhão era o primeiro passo para operar nossa salvação. E sua prática pessoal mostrava isso claramente: ele recebia a comunhão toda semana e encorajava os metodistas americanos a celebrar a Ceia semanalmente também. Wesley se referia a ela como o grande canal “pelo qual a graça do Espírito é conferida às almas humanas”.

Segundo Timothy Tennent, o que faz Wesley pensar diferente é que ele vê os meios de graça como um canal para transmitir não apenas a graça preveniente, mas também a graça justificadora e santificadora. Em outras palavras, Wesley “entendeu que a oração, a leitura das Escrituras e até mesmo a Ceia do Senhor podem ser usadas por Deus para converter alguém à fé”.[7]

No início de seu ministério Wesley acreditava que a conversão somente acontecia num momento de manifestação da graça divina; quando se tratava da pregação, esta somente poderia ocorrer dentro da igreja. Conseqüentemente, a salvação somente acontecia em ambientes fechados.

Ao considerar o mundo como sua paróquia e pregar nas praças e campos, houve uma mudança radical no seu entendimento sobre os meios da graça. Além de extrapolar os limites físicos, de acordo com Maddox, Wesley passou também por uma transição sobre o significado dos meios da graça. No começo, eles seriam como exercícios destinados a desenvolver uma vida de amor; mais tarde, como forma de conferir maior poder pela graça de Deus, uma manifestação de seu perdão.

“Este equilíbrio que o Wesley maduro estabeleceu entre (1) a insistência de que a capacitação para a santidade é um dom imerecido da graça de Deus conferido por diversos meios, e (2) a recomendação de usar esses mesmos meios como exercícios para nutrir, colaborativamente, essa santidade, foi corretamente identificada como o gênio da espiritualidade metodista”.[8]

Além disso, Wesley percebeu que cada meio de graça poderia ser adequado ou recomendado para esta ou aquela pessoa. Assim, por exemplo, “a um desajeitado e pecador (…) Deus o pega de surpresa, talvez através de um sermão ou de uma conversa que o faz acordar de seu estupor”. Outro, que se enxerga como um pecador, “depois de lutar por algum tempo com esses escrúpulos, resolve, e, portanto, continua no caminho do Senhor: escutando, lendo, meditando, orando, tomando a Ceia do Senhor, até que Deus, de acordo a maneira que melhor lhe convier, fala ao seu coração e diz: Tua fé te salvou. Vá em paz!

Sobre o uso e benefício dos meios

Mesmo sabendo que Deus “instituiu” os meios como forma regular de entrar em Sua Presença, Wesley reconhece alguns limites ao discorrer sobre aqueles que transformam o “meio” em “fim” de sua própria religiosidade, “aqueles que descansam satisfeitos, na forma da religiosidade, sem o poder”, e pensam ser cristãos, “embora Cristo nunca tenha sido ainda revelado em seus corações, nem o amor de Deus esparramado por todos os lados”, apenas por fazer uso desses mesmos meios.

Wesley admite que dificilmente o poder de Deus se manifeste assim porque tais pessoas desconhecem o significado verdadeiro da salvação pela graça e da “restauração para o favor e imagem de Deus, não por algumas obras, méritos, ou merecimentos seus, mas pela graça livre; a simples misericórdia de Deus, através dos méritos de seu bem-amado Filho”.

Naturalmente Wesley deve estar se referindo ao batismo e algum outro sacramento ou sinal exterior, onde um coração duro encontra guarida mesmo distante de Deus. O mesmo não pode ser dito da oração – a menos que seja um mantra, ou da leitura da Palavra porque ambas fazem parte do diálogo divino-humano cuja voz ou gemido inexprimível leva o som do Espírito Santo.

Por isso, não parece ser correto equiparar estes meios ao batismo, por exemplo, ainda que este simbolize o começo de uma nova vida ele não revela uma comunicação direta de Deus com o homem. Tratando-se da graça, o batismo reflete o efeito da graça na vida do homem enquanto a oração e a meditação são canais efetivos de revelação para Cristo.

Com relação a Ceia do Senhor, temos aqui uma aplicação eclesial muito específica e importante. A Ceia é um memorial com a sua própria liturgia. Seus elementos asseguram a presença do Espírito de Cristo e a graça de Deus. Portanto, há uma recomendação de que não seja tomada de maneira alguma, indignamente, para que não haja pessoas doentes e debilitadas na congregação. Wesley entendeu que a graça de Deus transmitida através dos meios promove a santidade. Vemos como há uma relação direta entre tomar a Ceia corretamente para que haja saúde na igreja e crescer na vida de santidade.

Graça além dos meios

Finalmente, Wesley sugere a espera pela manifestação divina e, entre outras recomendações, “depois de ter usado algum desses meios, cuide em como você valoriza a si mesmo, nele? Como você se congratula de ter feito alguma coisa grande”.

E admite também que a graça divina pode se manifestar por outra via:

Quanto à maneira de usar os meios, naquilo em que realmente depende a transmissão de alguma graça, cabe, primeiro, retermos sempre o senso claro, de que Deus está acima de todos eles. Ter o cuidado, por conseguinte, de não restringir o Onipotente. Ele faz o que quer, e quando quer que lhe agrade. Ele pode transmitir sua graça, tanto através dos meios que ele tem apontado, quanto fora deles. Talvez, ele o faça.[9]

Claro, já dizia o apóstolo, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade!!! [2 Co 3:17]

Eduardo Vasconcellos é teólogo e ministro nazareno, editor chefe da Editora Sal Cultural

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[1] Sermão As Vinhas de Deus.

[2] Sermão As Vinhas de Deus.

[3] Sermão Os Meios da Graça.

[4] Maddox, Responsible Grace, p.193

[5] Henry Knight III, Presence of God, p.11

[6] Wesley, A predestinação calmamente considerada (Sal Cultural, 201, p. 75)

[7] http://timothytennent.com/2011/07/09/means-of-grace-why-i-am-a-methodist-and-an-evangelical-part-3/

[8] Maddox, Responsible Grace, p.

[9] Sermão Os Meios da Graça

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

By Editor

One thought on “Os Meios da Graça no Pensamento de John Wesley”
  1. O caráter profético e temporário da lei mosaica tem sido pouco percebido pela igreja atual e consequentemente a graça capacitadora e transformadora também. Com isso a percepção da pessoalidade e da própria existência do Espírito Santo tem desaparecido da experiência cotidiana do cristão. Que Deus nos ajude!

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