Por Glória Hefzibá

Armínio-wesleyanos vêm a liberdade humana da maneira mais intuitiva possível: sua escolha é livre se ela não foi determinada por qualquer outra pessoa (ou coisa) além de você mesmo. Em poucas palavras, se a escolha foi realmente sua. É a chamada liberdade libertária. William Lane Craig explica da seguinte maneira:

Por “causação pelo agente” quer-se dizer que o próprio agente é a fonte de suas ações, e não há qualquer outro determinante de por que o agente livremente faz isto ou aquilo — essa é simplesmente sua escolha.[1]

No entanto, de acordo com o calvinismo, a escolha é livre se você decidiu de acordo com a sua inclinação, o seu desejo mais forte. Dizendo assim, parece a mesma coisa, mas, quando se vê o que está por trás desse discurso (bem por trás inclusive, de maneira bastante sorrateira), toda escolha humana perde significado: é Deus quem, de acordo com a Sua vontade, determina qual será sua inclinação mais forte. E, ora, se a sua vontade é regida por esse desejo mais intenso, então, obviamente, sua vontade é regida pela vontade de Deus.

Isso pode até soar bonito para os cristãos. Seria bom que tudo o que fizéssemos estivesse de acordo com o mandamento de Deus. Mas e quanto àquilo que não está de acordo com ele? E quanto aos nossos pecados? E quanto a todas as atrocidades, feitas não somente por cristãos, no mundo? Ora, é Deus também que, no calvinismo, determina todos esses desejos humanos que, por fim, determinam suas vontades. Tudo, em última análise, acontece porque Deus quer, e nunca apenas porque Deus permite.

Essa maneira de se ver a liberdade sob a perspectiva calvinista é chamada de compatibilismo: uma curiosa liberdade determinada. Mas além do problema de ligar causalmente Deus aos atos malignos da humanidade, essa visão afeta nossa ideia de responsabilização pelos atos (como ser responsável por algo que foi causado por Outro?) e de sentido (que sentido têm minhas ações se elas são determinadas?). A responsabilização só pode ser imaginada se dissermos que, bem, somos responsáveis pelas nossas atitudes porque Deus diz que somos e ponto final. Não existe qualquer critério conhecido que faça de algo “responsabilidade” nossa. O mesmo acontece com o significado. As duas definições, portanto, deixam de ser “definidas”, ou, ao menos, tornam-se ideias impossíveis de serem conhecidas (o que é, afinal, a responsabilidade? O que é o sentido?).

Com isso em mente, é possível defender a hipótese de que o testemunho bíblico torna o livre-arbítrio libertário uma exigência para a Queda. Sem esse tipo específico de liberdade, não haveria Queda.

No relato da Queda, vemos dois seres humanos agindo contra a vontade de Deus. Mas, curiosamente, apenas um é responsabilizado. Quando Eva come do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, nada acontece. Porém, quando Adão come do fruto, imediatamente eles se percebem nus, e voz de Deus viria mais tarde buscando o casal que, agora, tentava esconder-se.

Ora, se a liberdade é compatibilista, ou seja, somos livres quando seguimos nosso desejo mais intenso, e se aceitarmos que a responsabilização funciona mesmo nesse modelo (como querem insistir os calvinistas), então por que Eva não foi responsabilizada pela Queda? Ao contrário, as Escrituras mostram Adão como o pecador (Romanos 5:12 e seguintes) e Eva sendo escusada (1 Timóteo 2:14[2]). Deus conhecia o que cada um poderia fazer dentro de suas possibilidades/limitações e o quão reprovável foram suas atitudes.

Há, claramente, uma diferença entre a atitude de Adão e a de Eva, e essa diferença tornou Adão responsável: ele pecou deliberadamente, ou seja, pecou porque quis (não forçado) e com plena consciência de que estava rebelando-se contra Deus (a ele foi dado o mandamento de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, e, portanto, ele entendia muito bem o que estava fazendo — Gênesis 2:16, 17).

A escolha livre não se resume (e nem é definida) pelo desejo mais forte. O testemunho bíblico dá grande ênfase ao pecado deliberado, como diz Hebreus 10:26, 27 (NVI):

Se continuarmos a pecar deliberadamente[3] depois que recebemos o conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados, mas tão-somente uma terrível expectativa de juízo e de fogo intenso que consumirá os inimigos de Deus.

O contexto de Hebreus já fala da nova aliança, este período de graça em que a solução para o problema da Queda foi providenciada e está disponível (a morte expiatória de Cristo). Mas a ênfase está no fato de que o pecado deliberado, em que há conhecimento da verdade, é rigorosamente punido por Deus (e hoje ainda mais, visto que não há outra solução para quem despreza a solução de Cristo).

Adão estava numa situação muito parecida. Ele conhecia a verdade do que o fruto da árvore proibida faria caso ele escolhesse rebelar-se contra o mandamento de Deus. Mas ele pecou deliberadamente, sem ser enganado, sem ser de qualquer maneira forçado.

Como o compatibilismo do simples “desejo mais forte” poderia jamais explicar a responsabilidade de Adão, mas não de Eva, sobre a Queda? Ora, ela também não agiu de acordo com seu desejo mais forte? A liberdade libertária, ao contrário, harmoniza com o testemunho das Escrituras. A Bíblia esclarece os critérios de Deus para a responsabilização das pessoas: a escolha é livre, ou seja, parte do homem mesmo, e não de Deus, indo conscientemente (por sua própria deliberação) contra a ordem do Senhor.

Dessa maneira, se existiu a Queda, e se a Palavra de Deus é fiel quando ensina que por causa de Adão toda a criação foi amaldiçoada, então, das opções apresentadas, apenas uma se sustém: Deus permitiu que Adão, por sua decisão própria, caísse. Mas soberano é o Senhor da História, que, mesmo antes da fundação do mundo, já via Seu Cordeiro.

[1] CRAIG, William Lane. Questions on Molinism, Compatibilism. and Free Will. Disponível em <http://www.reasonablefaith.org/questions-on-molinism-compatibilism-and-free-will>. Acessado em 14 março de 2015.
[2] Inclusive, a escusa dada à Eva serve de motivação para que as mulheres de Éfeso aprendam o Evangelho antes de poder ministrá-lo: Paulo tinha a preocupação de que as cristãs efésias acabassem enganadas como a primeira mulher (Eva, obviamente, sofreu as consequências de seu erro). Pelo que indica a fala de Eva à serpente, Adão não a havia instruído corretamente sobre o mandamento de Deus (Gênesis 3:2, 3; comp. Gênesis 2:16, 17). Ele, todavia, conhecendo bem o mandamento de Deus, não foi enganado pelas mentiras da serpente, mas não venceu sua própria concupiscência (Tiago 1:13–14).
[3] Do grego, hekousiós, quer dizer “voluntariamente, desejosamente, de sua própria vontade; implicitamente o oposto de pecados cometidos sem reflexão, por ignorância, ou por fraqueza” (Strong). J. Thayer diz ainda mais claramente: “aquilo que é de livre-arbítrio” (HELPS Word-studies).

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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