Por Alexander MacLaren

“Aquele que nem mesmo a Seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará também com ele todas as coisas?” (Romanos 8:32)

Aqui temos uma alusão, para não dizer uma citação óbvia, à narrativa em Genesis da oferta de Isaque por Abraão. A mesma palavra que é empregada na Septuaginta para traduzir a palavra hebraica que em nossa Bíblia está como “negou” é empregada aqui pelo apóstolo. É certo que neste texto passava pela mente de Paulo a idéia de que, em algum sentido verdadeiro e profundo, há uma analogia entre o maravilhoso ato de fé e entrega da parte de Abraão e a maravilhosa dádiva que Deus deu ao mundo: Seu Filho.

Se considerarmos esse ponto de vista, as palavras do texto ganham uma força sem igual, sugerindo muitas reflexões profundas sobre as quais talvez o silêncio seja a melhor opção. No entanto, guiados por essa analogia, vamos lidar com cada uma dessas palavras.

I – Consideremos esse misterioso ato de entrega divina.

Essa analogia parece nos indicar, por mais estranho que seja, e bem diferente das idéias frias e abstratas da natureza divina que se pensa ser filosófico nutrir, que algo correspondente à dor e à perda que rodeava o coração do patriarca também envolveu a mente divina quando o Pai enviou o Filho para ser o Salvador do mundo. Não somente dar, mas entregar-se, é, como sabemos, a maior glória e expressão máxima do amor. Quem se atreverá a dizer que entendemos tão plenamente a natureza divina a ponto de termos certeza de que essa analogia é impossível? Dizemos: “porque não oferecerei ao Senhor meu Deus holocaustos que não me custem nada”. Curvemo-nos em silêncio diante da vaga sugestão que parece sair das palavras do meu texto, por meio do qual Ele diz: “não oferecerei a vós aquilo que nada me custa”. “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou”, não O negou a nós.

Passando daquilo que, ouso dizer, muitos de vocês podem supor ser fantasioso e injustificado, cheguemos então à parte mais segura das outras palavras do meu texto. Observe como a realidade da entrega é enfatizada pela proximidade do vínculo que, na eternidade misteriosa, une o Pai e o Filho. Como no caso de Abraão e também neste exemplo sublime, do qual Abraão e Isaque são apenas reflexos turvos e oscilantes na água, o Filho é o Filho do próprio Deus. Parece-me impossível, com base em qualquer interpretação justa das palavras diante de nós, abster-se de dar a esta designação seu sentido mais sublime e misterioso. Não pode simplesmente significar Messias, não pode significar meramente um homem que era como Deus em pureza de natureza e proximidade de comunhão, pois a força da analogia e a ênfase da palavra que é ainda mais enfática no grego do que no português, “Seu próprio Filho”, aponta para uma comunhão de natureza, para uma unicidade e singularidade de relação e para uma proximidade de intimidade não compartilhados por nenhum outro. Temos então que estimar o tamanho da rendição pela ternura e pelo terror do vínculo. “Tendo ele, pois, ainda um Seu Filho amado, enviou-o também a estes”.

Observe, novamente, como a grandeza da entrega se torna mais enfática ao contemplá-la em seu duplo aspecto negativo e positivo, nas duas orações sucessivas: “Aquele que nem mesmo a Seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós”, uma entrega absoluta e categórica da parte de Cristo à humilhação da vida e ao mistério da morte.

Observe também como a ternura e a beneficência, que foram os únicos motivos da rendição, são destacadas nas últimas palavras: “por todos nós”. A única e inconfundível razão que moldou, se assim posso dizer, o propósito divino e determinou seu ato misterioso foi um puro desejo de nossa bênção. Nenhuma definição é dada quanto à maneira pela qual essa rendição operou para nosso bem, o apóstolo não precisa afinal se preocupar com isso, pois seu propósito é enfatizar todo o altruísmo e a absoluta simplicidade do motivo que moveu a vontade divina. Uma grande pulsação de amor por toda a humanidade levou a essa rendição transcendente, diante da qual só podemos nos curvar e dizer: “Graças a Deus, pois, pelo Seu dom inefável”.

E agora, observe como este ato misterioso é compreendido aqui pelo apóstolo como o que eu posso chamar de fato esclarecedor quanto a toda a natureza divina. A partir dele, e somente dele, as verdades mais profundas de Deus são esclarecidas. Estamos acostumados a falar da vida perfeita e altruísta de Cristo e de Sua morte pura e benevolente como sendo a grande manifestação para todos nós de que em Seu coração há uma fonte infinita de amor por nós. Além disso, estamos acostumados a falar da missão e da morte de Cristo como sendo a revelação a nós do amor de Deus e também do homem que foi Jesus Cristo, pois cremos que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” e que Ele assim manifestou e nos revelou a própria natureza da divindade, em Sua vida e em Sua pessoa que, como Ele mesmo diz, “Quem me vê a mim vê o Pai”. Toda conclusão que tiramos quanto ao amor de Cristo é, por definição, uma conclusão quanto ao amor de Deus. Em contrapartida, meu texto aborda a questão de um ponto de vista um tanto diferente e nos convida a ver, na missão e no sacrifício de Cristo, a grande demonstração do amor de Deus, não apenas porque “Deus estava em Cristo”, mas porque a vontade do Pai, concebida como distinta e ainda em harmonia com a vontade do Filho, O entrega por nós. Temos então que dizer não apenas que vemos o amor de Deus no amor de Cristo, mas que “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito” para que pudéssemos ter vida por meio dEle.

Essas várias fases do amor de Cristo, enquanto manifestação do amor divino, podem não ser capazes de se harmonizar perfeitamente em nossos pensamentos, mas elas se fundem em um só pensamento, que fundamenta todas elas: “Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores”. Temos que pensar não só em Abraão que teve o ato de entregar seu filho, mas também no inocente Isaque, o qual não se rebelou, carregando sobre os ombros a lenha para o holocausto, assim como Cristo carregou a cruz, sofrendo para ser amarrado sobre a pilha de madeira, não apenas pelas cordas que atavam seus membros, mas pelas cordas da obediência e da submissão. Em ambos os casos, temos que nos curvar diante da revelação do amor divino.

II – Em segundo lugar, fixe o olhar no poder desta entrega divina para obter todas as outras dádivas.

A pergunta triunfante do apóstolo “Como nos não dará também com ele todas as coisas?” requer para sua resposta afirmativa apenas a crença na imutabilidade do coração de Deus e na uniformidade de Seu propósito. E se isso for reconhecido, sua conclusão inevitavelmente se seguirá: Com ele, nos dará todas as coisas. É por isso que a dádiva maior implica a menor. Não esperamos que um homem que entrega um milhão de reais a outro, para ajudá-lo, faça questão de um centavo depois. Se der um diamante, você deve também dar uma caixa para guardá-lo, pois na dádiva de Deus a menor seguirá o exemplo da maior; e tudo que o homem possa desejar, é pouco para Ele, em comparação ao que foi a dádiva que é Seu Filho.

Há um belo contraste entre as duas maneiras de ofertar, implícitas nas palavras do original, talvez quase impossíveis de serem reproduzidas em qualquer tradução. A expressão que é traduzida como “nos dará todas as coisas” implica que há graça e alegria no ato da entrega. Deus deu em Cristo, o que podemos dizer com reverência que foi um ato muito doloroso para Ele. Não entregará Deus a menor das ofertas, qualquer que seja, sendo tal ato a alegria de Seu coração? A maior implica a menor.

Além disso, esta grande dádiva traz consigo todas as outras, pois o propósito da dádiva maior não pode ser alcançado sem a concessão da menor. Ele não começa a construir se não for terminar. Não calcula mal Seus recursos, nem se auto-sabota dando início a um grande projeto, mas deixando-o pouco antes de que Seu propósito seja alcançado. Os homens constroem grandes palácios e vão à falência antes que o telhado seja construído. Deus traça Seus planos com o conhecimento de Suas faculdades e, tendo antes de tudo concedido essa grande dádiva, não a concederá em vão por falta de algumas dádivas inferiores. Cristo nos apresenta o mesmo argumento, apenas começando do outro lado do processo. Paulo diz que Deus pôs o fundamento, o qual é Jesus Cristo. Você acha que Ele vai parar antes que a lápide seja colocada? Cristo disse: “Porque a vosso Pai agradou dar-vos o reino”. Você acha que Ele não vai lhe dar pão e água no caminho para este reino? Enviará Ele Seus soldados semi-equipados? Quando estiverem em marcha, descobrirão que partiram com um oficial defeituoso e com ferramentas insuficientes? Será que os filhos do Rei, no caminho para seus tronos, serão deixados a lutar de qualquer maneira, sem o que precisam para chegar lá? Essa não é a maneira de Deus agir. Aquele que começou uma boa obra também a aperfeiçoará e quando Ele deu a você e a mim Seu Filho, comprometeu-se a nos dar todas as bênçãos subseqüentes que fossem necessárias para tornar a obra desse Filho completa em cada um de nós.

Novamente, esta grande bênção traz após ela, como conseqüência necessária, todas as outras bênçãos menores e secundárias, visto que, em todos os sentidos, tudo está incluso em Cristo quando O recebemos. “Com ele”, diz Paulo, como se aquela dádiva, uma vez colocada no coração de um homem, ficasse realmente enraizada dentro dele e tivesse como acompanhamento indispensável a posse de todas as outras coisas que um homem possa precisar. Jesus Cristo é, por assim dizer, um recipiente de grande riqueza, fertilidade e abundância, a partir do qual se derramará, com profusão encantadora, todo tipo de suprimentos de acordo com nossas necessidades. Dessa fonte flui leite, vinho e água conforme a necessidade do homem. Tudo nos é dado quando Cristo nos é dado, porque Jesus é o Herdeiro de todas as coisas e nEle possuímos todas as coisas, assim como uma pobre donzela de aldeia casada com um príncipe disfarçado que, no dia seguinte às suas bodas, descobre que é uma senhora de vastas terras e senhora de um reino. “Aquele que nem mesmo a Seu próprio Filho poupou” não apenas “nos dará com Ele”, mas nEle “nos dará todas as coisas”.

Assim como essa grande dádiva é o fato iluminador em relação às intenções do coração de Deus, ela também se constitui como o fato interpretativo quanto aos procedimentos divinos. Somente quando aceitarmos Cristo como a dádiva de Deus e a razão de tudo o que Deus faz, poderemos então enfrentar as trevas, as perplexidades e as perguntas torturantes que desde o início atormentaram as mentes dos homens ao olharem para os mistérios da miséria humana. Se reconhecermos que Deus nos deu Seu Filho, então todas as coisas se tornam, se não claras, ao menos iluminadas com algum brilho daquela grande dádiva e sentimos que a rendição de Cristo é o fato impulsionador que molda à sua própria semelhança, para seu próprio propósito, todo os outros aspectos do relacionamento de Deus com os homens. Essa dádiva torna qualquer coisa crível, razoável e possível. Além disso, Ele não entregaria Seu próprio Filho e então contradiria Seu próprio ato enviando ao mundo qualquer coisa que não fosse boa.

III – Por último, lidemos com uma ou duas questões práticas desses pensamentos, em referência à nossa própria crença e conduta.

Primeiro, eu diria: devemos corrigir nossas avaliações em relação à importância dos dois conjuntos de dádivas. De um lado está Cristo, solitário, e do outro estão concentrados todos os prazeres dos sentidos, todas as bênçãos do tempo, todas as coisas que a avaliação vulgar dos homens unanimemente reconhece como sendo “boas”, as quais são sem importância. Este segundo grupo está agrupado em um “também”. Eles são apenas os sinais externos de Sua preciosidade muito mais profunda e verdadeira. Estes são secundários, mas Ele é o principal. Que inversão de nossas noções do que é bom! Você rebaixa todas as riquezas, prazeres, facilidades e prosperidade do mundo em um “também”? Você se contenta em colocá-los em segundo plano, se isso agrada a Cristo, como resultado? Você vive como se tivesse feito isso? O que você mais deseja? Pelo que você mais se esforça? “Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas”.

Que esses pensamentos nos ensinem que a tristeza também é uma das dádivas de Cristo. As palavras de meu texto, à primeira vista, podem parecer simplesmente uma promessa de abundantes bens terrenos, mas veja o que está próximo a elas e é até parte da mesma explosão triunfante. “A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?” Estas são algumas de “todas as coisas” que Paulo esperava que Deus desse a ele e seus irmãos. E, olhando para tudo, ele diz: “Todas as coisas contribuem juntamente para o bem” e em todas elas podemos ser mais do que vencedores. Seriam resultados muito pobres e mesquinhos se essa grandiosa dádiva de que falamos fosse apenas seguido pelas doçuras, prosperidades e riquezas deste mundo. Porém, aqui está o ponto que devemos manter — visto que Ele nos dá todas as coisas, tomemos todas as coisas que nos vêm como sendo, tão distintamente, as dádivas de Seu amor, assim como é a dádiva do próprio Cristo. Um médico sábio, para um observador ignorante, pode parecer estar agindo de maneira contraditória quando em um momento ele corta um membro, com uma faca afiada e brilhante, e em seguida fecha as feridas com diligência assim como as artérias, mas o propósito de ambos os atos é apenas um.

O ciclo diurno da terra traz o alegre nascer do sol e o triste pôr do sol. O ciclo anual nos conduz nos dias amenos de verão e nos de inverno cortantes. O propósito de Deus é um, o que muda são Seus métodos. A estrada segue direto para seu objetivo, mas às vezes passa por túneis úmidos, escuros e sufocantes, e em outras vezes por clareiras ensolaradas e pastagens verdes. O propósito de Deus, irmão, é sempre o amor. Tudo que ele retira é uma dádiva e a tristeza não é o menor dos benefícios que recebemos por meio do Homem das Dores.

Então, novamente, deixe que esses pensamentos nos ensinem a viver por uma fé quieta e pacífica. Achamos muito mais fácil confiar em Deus para o céu do que para a terra — para as bênçãos distantes do porvir do que para as nossas necessidades mais próximas. Muitos homens arriscarão sua alma nas mãos de Deus, os quais hesitariam em arriscar ali a comida de amanhã. Por quê? Não seria porque realmente não confiamos nEle para a dádiva maior que achamos tão difícil confiar nEle para a menor? Não seria porque realmente queremos a menor mais do que queremos a maior que podemos nos colocar com fé em um e querer algo mais sólido para buscar pela outra? Viva com a confiança tranqüila de que Deus dá todas as coisas e nos dá tanto para amanhã quanto para a eternidade, tanto para a terra quanto para o céu.

Por último, tenha certeza de que recebeu a grande dádiva de Deus. Ele dá a todo o mundo, mas só tem quem a aceita pela fé. Você a recebeu, meu irmão? Observo a vida de uma multidão de cristãos professos e esta questão pesa em meu coração, a julgar pela conduta — eles realmente receberam a Cristo? “Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer?” Vejam como estão todos lutando e se debatendo, suando e se preocupando, para obter os bens da vida atual, e aqui está uma dádiva brilhando diante de você o tempo todo, a qual você não está disposto a aceitar. Assim como um homem parado em um mercado oferecendo dinheiro a troco de nada e ninguém aceita porque acham que a oferta é boa demais para ser verdade, Deus se queixa e se lamenta: Estendi minhas mãos o dia todo, carregado de dádivas, e nenhum homem aceitou.

“Apenas o paraíso pode ser pedido; Somente Deus é dado”.

Ele dá Seu Filho. Aceite-O pela fé humilde em Seu sacrifício e Espírito. Aceite-O e com Ele será lhe dado gratuitamente todas as coisas.

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Este fragmento é um capítulo do livro Romanos, de Alexander MacLaren, publicado pela Editora Sal Cultural.
Tradução de Reginaldo Castro e Leonardo Calderaro

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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