Um Estudo da síntese feita por John Wesley do tratado de Jonathan Edwards sobre Afeições Religiosas

Gregory S. Clapper

A frase “afeições religiosas” tem um som pitoresco hoje. Nas raras ocasiões em que é encontrada, é mais do que provável que evoque imagens de um dândi do século XIX supervestido, lendo uma teosofia floridamente romântica em um esforço para cultivar novos pináculos de interioridade requintada. Este nem sempre foi o caso. Para Jonathan Edwards e John Wesley, as afeições “religiosas” ou “santas” ou “graciosas” eram a essência do cristianismo, e nenhum dos dois era um diletante religioso da sala de estar. Bem no início de seu Tratado sobre Afeições Religiosas, Jonathan Edwards afirma que “a verdadeira religião, em grande parte, consiste em Santas Afeições”.[1] Em seu resumo posterior deste trabalho, Wesley manifesta a mesma opinião.[2]

Neste artigo, tentarei deixar claro o que Wesley quis e não quis dizer com isso. Para isso, farei primeiramente algumas observações sobre o pensamento de Edwards e a relação de Wesley com ele. Em seguida, exporei brevemente o resumo de Wesley do Tratado de Edwards e compararei os temas encontrados lá com a teologia que as obras originais de Wesley trazem. Esta comparação mostrará que o Tratado não estava apenas tangencialmente relacionado às preocupações teológicas de Wesley (como alguns de seus resumos publicados), mas que era um documento teologicamente importante que retratava um componente crucial do que Wesley pensava a respeito do cristianismo.

Edwards e as afeições religiosas

Jonathan Edwards nasceu em East Windsor, Connecticut, no ano do nascimento de John Wesley, 1703 (veio a morrer em 1758). Educado em Yale, ele teve um fascínio ao longo da vida pela filosofia e pelas ciências naturais, bem como pela teologia. Locke e Newton foram seus companheiros intelectuais tanto quanto Calvino. Tais interesses se refletiam tanto em seus escritos quanto em suas leituras, como se vê em seus trabalhos intitulados “Dos Insetos”, “A Mente” e até “Do Ser”.[3] Embora seu livro Freedom of the Will [Liberdade da Vontade][4] seja geralmente considerado sua maior contribuição para a teologia, Edwards é mais conhecido por seu sermão “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, que é mais notável por sua representação vívida do fim que aguarda os réprobos. Infelizmente, nem Liberdade da Vontade nem seu famoso sermão dão uma imagem verdadeira do amplo escopo e natureza criativa de seu trabalho. Edwards estava muito mais preocupado com a beleza e o amor do que com a escravidão da humanidade ao pecado ou a natureza do inferno.[5] São esses interesses mais amplos que são mais relevantes para nossas preocupações aqui.

Roland Delattre, em Beauty and Sensibility in the Thought of Jonathan Edwards [Beleza e sensibilidade no pensamento de Jonathan Edwards], afirma que Edwards entendia que o Ser Divino estava mais imediata e poderosamente presente para a humanidade como beleza.[6] Essa beleza é conhecida por meio de nossa sensibilidade; isto é, é sentida, e não meramente inferida intelectualmente pelo entendimento. O conhecimento parcimonioso de Deus, então, está disponível apenas em e através do desfrute de Deus. A plenitude de Deus é encontrada como uma realidade viva “somente na medida em que os homens encontram em [Deus] toda a sua alegria e felicidade, a realização de seu ser estético-afetivo”.

Essa ênfase na apreensão sensata de Deus, quando ligada à apreciação de Edwards pela filosofia de John Locke, foi tomada por alguns dos seus intérpretes como se sua epistemologia nada mais fosse do que empirismo filosófico.[7] Mas Terrence Erdt mostrou recentemente que um “senso do coração” ou uma “doçura” (suavitas) pode ser encontrada no pensamento de Calvino, de modo que a ênfase de Edwards no sentimento e no “coração” tem uma raiz na tradição teológica que é mais profunda do que muitas vezes se suspeita.[8] Mas, independentemente de suas raízes históricas, o “senso do coração” afetivo de Edwards estava no centro de sua psicologia, epistemologia, ética e, de fato, de toda a sua teologia.

Wesley e Edwards

Foi a preocupação teórica de Edwards com a natureza da experiência religiosa e, mais importante, seu ardente desejo prático de ter tal experiência amplamente propagada, que colocou Edwards e Wesley em um terreno comum. O primeiro contato de Wesley com os escritos de Edwards aconteceu em 1738. Wesley estava viajando de Londres para Oxford quando leu a narrativa verdadeiramente surpreendente das conversões recentemente realizadas na cidade de Northampton, na Nova Inglaterra. Certamente isso “é maravilhoso aos nossos olhos”.[9]

O que ele leu foi o livro A Faithful Narrative of the Surprising Work of God [Uma narrativa fiel da surpreendente obra de Deus], de Edwards, que seria a primeira das cinco obras de Edwards que Wesley iria resumir e publicar. As outras quatro obras que ele publicou também tinham relação direta com os assuntos da experiência cristã e evangelismo. Estas foram The Distinguishing Marks of a Work of the Spirit of God [As Marcas Distintivas de uma Obra do Espírito de Deus] (escrito em 1741, Wesley resumiu e publicou em 1744), Some Thoughts Concerning the Present Revival of Religion in New England [Alguns pensamentos sobre o atual avivamento religioso na Nova Inglaterra] (1742,1745); The Life of David Brainerd [A Vida de David Brainerd], que era genro de Edwards e missionário (1749,1768); e, claro, Treatise on Religious Affections [Tratado das Afeições Religiosas] (1746,1773).

Estas cinco obras de Edwards representam o maior número de obras separadas de um autor que Wesley teria resumido e publicado em seu próprio nome. A influência de Edwards em Wesley foi tão forte que Albert C. Outler disse que Edwards era uma “fonte principal” da teologia de Wesley, e que, de fato, o encontro de Wesley com os primeiros escritos de Edwards foi um dos quatro fatores básicos que definiram o esboço do pensamento de Wesley.[10]

Isso não quer dizer, porém, que não houvesse diferenças importantes entre os dois, pois havia. Wesley estava familiarizado com as idéias publicadas em Freedom of the Will de Edwards, mas ele não publicou nenhum resumo desse livro, pelo contrário, ele atacou os pontos de vista contidos nele em seu livro Thoughts Upon Necessity [Pensamentos sobre a necessidade]. Wesley achava que a negação da liberdade humana feita por Edwards tornava a vida moral um absurdo. Em geral, qualquer coisa que cheirasse a “graça irresistível” calvinista ou a “eleição incondicional”, Wesley teve o cuidado de extirpar de suas resenhas.

Edwards também teve seus desentendimentos com Wesley. De fato, o único registro de Edwards referindo-se a Wesley foi uma observação depreciativa que ele fez sobre as suas opiniões sobre a perfeição. Se alguém fosse fazer uma leitura irénica de suas diferenças, poderia dizer que enquanto Wesley e Edwards concordavam sobre a soberania de Deus, Edwards expressou essa soberania através de suas doutrinas calvinistas da predestinação e da escravidão da vontade, e Wesley expressou a mesma coisa enfatizando a graça preveniente e as possibilidades de aperfeiçoamento do espírito. Tanto as afinidades quanto as diferenças entre esses dois homens podem ser vistas às minúcias no resumo que Wesley fez do Tratado das Afeições Religiosas, o livro mais lido de Edwards,

O Resumo de Wesley do Tratado de Edwards

A tarefa de discernir os pontos de vista de alguém que observa o trabalho de outro homem deve ser abordada com cautela. Frank Baker, em seu artigo A Study of John Wesley’s Readings  [Um Estudo das Leituras de John Wesley], afirma que uma das maneiras pela qual Wesley lidou com um livro “perigoso” foi publicar uma versão expurgada dele. Isso pode levar alguém a acreditar que a versão de Wesley do Tratado sobre Afeições Religiosas era apenas o menor de dois males: já que o livro já estava impresso, Wesley pode ter pensado que seria melhor se seus seguidores lessem sua versão em vez da versão original, se eles tivessem que lê-la. Se esse fosse o caso, a resenha seria menos um endosso às opiniões de Edwards e mais uma tolerância um tanto hostil a elas.

Tais dúvidas sobre a atribuição dos pontos de vista da resenha são reforçadas quando se observa quais livros, de fato, apareceram na primeira edição da Biblioteca Cristã de Wesley 18 que continha pontos de vista contraditórios com os de Wesley. Mas este é um problema menor do que parece ser à primeira vista, pois a publicação das passagens ofensivas foi mais o resultado do resumo apressado de Wesley do que qualquer inconsistência no pensamento de Wesley. Wesley mais tarde corrigiu a Biblioteca Cristã para remover as contradições, e a versão expurgada foi publicada após sua morte por Thomas Jackson em 1827.

Há uma evidência convincente, porém, que nos permite tomar esse resumo de Wesley do Tratado de Edwards como representativa das próprias visões de Wesley, a saber, que Wesley endossou especificamente o livro.

Wesley nem sempre escreveu um prefácio para os livros que publicou, mas no caso do Tratado ele o fez. Nesse prefácio, ele se distancia de algumas partes do Tratado original e recomenda a parte que reteve. O final deste prefácio diz: “Desta pilha perigosa, onde muita comida saudável é misturada com muito veneno mortal, selecionei muitas observações e admoestações que podem ser de grande utilidade para os filhos de Deus. Que Deus as escreva nos corações de todo aquele que deseja andar como Cristo também andou!” Nosso propósito agora é distinguir o que Wesley considerava veneno e daquilo que ele considerava comida.

1) O que Wesley apagou

Determinar o que Wesley deixou de fora do Tratado é mais difícil do que se poderia suspeitar, pois parece que Wesley não trabalhou a partir da edição original. John E. Smith determinou que Wesley trabalhou a partir de um resumo feito por William Gordon, publicado em Londres em 1762.[11] Gordon, que é listado como um “ministro independente” no Dicionário de Biografia Nacional, reduziu o texto em mais de um terço, omitiu muitas notas e reescreveu o texto em centenas de lugares. Isso significa que para ter certeza de que qualquer omissão foi verdadeiramente a omissão de Wesley, todos os três textos devem ser comparados.

Mas determinar exatamente o que Wesley deixou de fora seria crucialmente importante apenas se nosso propósito fosse narrar as diferenças entre Edwards e Wesley no tópico das afeições religiosas. A intenção central deste artigo, porém, é ver o que Wesley gostou no Tratado, não o que ele não gostou. Assim, em vez de uma longa comparação textual de três vias, farei apenas algumas observações gerais sobre a sinopse de Gordon e as exclusões de Wesley.

Em primeiro lugar, embora tenha removido grande parte do texto original, a análise de Edwards feita por Gordon foi muito menos crítica do que a de Wesley. O Tratado original consistia de um prefácio e três partes principais: Parte I, sobre a natureza das afeições; Parte II, que contêm 12 sinais que não podem ser usados ​​para julgar se as afeições particulares são ou não graciosas; e a Parte III, que contém os 12 sinais distintivos das “Afeições Verdadeiramente Graciosas e Sagradas”. Gordon retém as quatro partes básicas do trabalho, e nas partes II e III ambos os conjuntos de 12 sinais são totalmente representados. Suas remoções e revisões, que aparentemente ocorreram com mais frequência quando ele determinou que Edwards era “refinado demais para capacidades comuns”, não pervertem, a meu ver, o impulso essencial do trabalho de Edwards.

Wesley era um editor muito mais implacável. Enquanto o resumo de Gordon era cerca de dois terços do original, o de Wesley era um sexto. Ele cortou não apenas o prefácio de Edwards, mas o segundo, terceiro e quarto dos doze sinais da Parte III em sua totalidade, além de reduzir consideravelmente as explicações dos sinais restantes. Um sinal (o sétimo) foi tão reduzido que Wesley nem se deu ao trabalho de numerá-lo e, em vez disso, apenas incluiu um breve resumo dele na seção anterior. (Esta omissão do número, no entanto, pode ser culpa das impressoras notoriamente ruins de Wesley. Mais adiante, no texto, percebe-se que a numeração salta de IV para VI, sem mostrar o V)

As omissões que Wesley fez geralmente se enquadram em uma das duas categorias, ambas mencionadas no Prefácio de Wesley. Essas duas categorias de material editado podem ser definidas como: 1) calvinista e 2) excessivamente “sutil”.

Como ele deixou claro em seu Prefácio, Wesley pensou que o propósito de Edwards ao escrever o Tratado era mostrar que os apóstatas nunca foram verdadeiros crentes em primeiro lugar. Em outras palavras, Wesley viu o Tratado como um tratado calvinista sobre a perseverança dos santos. Wesley afirmou que a tentativa de Edwards de defender uma doutrina tão indefensável o levou a juntar “tantas distinções curiosas, sutis e metafísicas, que são suficientes para confundir o cérebro e confundir o intelecto de todos os homens e mulheres simples do universo; ou para fazê-los duvidar, se não negar totalmente, toda a obra que Deus havia realizado em suas almas.” Após esta crítica, Wesley continua a admitir, como citado acima, que há muita comida saudável misturada com o “veneno mortal.”

Como outros apontaram, parece claro que Wesley interpretou mal o propósito de Edwards ao escrever o Tratado. Edwards estava tentando mostrar sinais válidos para distinguir a verdadeira da falsa piedade ou “religião”, não preocupado em explicar a apostasia. Wesley poderia justificadamente ser acusado de ser um tanto defensivo aqui – vendo o calvinismo de Edwards operando onde realmente não estava. É verdade que Edwards menciona os “eleitos” em alguns lugares, e outras tendências calvinistas que Wesley alterou podem certamente ser vistas no original, mas o Prefácio de Wesley descaracteriza o teor do Tratado e o rotula de polêmico quando é de fato construtivo. Uma vez que Wesley foi apanhado em um debate acalorado com os calvinistas na época do resumo, sua defesa pode pelo menos ser compreendida, se não justificada.

As passagens mais substantivas que Wesley omitiu do Tratado, entretanto, não são as abertamente calvinistas, mas as excessivamente “sutis” que “intrigam” e “confundem” a humanidade pensante. Wesley compartilhava o interesse de Edwards pela ciência e filosofia, mas a edificação era seu critério final ao avaliar a palavra escrita. Edwards foi um brilhante pensador especulativo que incorporou muitas de suas teorias filosóficas em seus trabalhos teológicos. Por causa disso, Wesley encontrou muita coisa que poderia ser dispensada. Isso pode ser visto especialmente em dois dos três sinais que Wesley omitiu.

O segundo dos doze sinais de Edwards afirma que o “primeiro fundamento objetivo das afeições graciosas é a natureza transcendentemente excelente e amável das coisas divinas”; o terceiro sinal diz que as afeições santas são fundadas na “beleza da excelência moral das coisas divinas”. Nesses dois sinais, podemos ver a metafísica da “beleza” e da “excelência” que Delattre declarou ser o eixo central das especulações de Edwards.[12] Wesley provavelmente estava satisfeito com o ponto de vista de Edwards (feito em muitos outros lugares) de que as coisas divinas são objeto de afeições graciosas, e que discussões extensas sobre a “beleza” ou “excelência moral” dessas coisas divinas eram, portanto, dispensáveis.

Conjecturar sobre por que Wesley deletou o quarto sinal é mais difícil, pois afirma algo que Wesley não gostaria de negar – o componente intelectual nas afeições (“Afeições graciosas surgem da mente quando iluminada, correta e espiritualmente para entender ou apreender as coisas divinas.”) Certamente, Wesley nunca foi tentado, como Lutero foi, a “arrancar os olhos da razão” a fim de promover a fé. Pode-se apenas supor que Wesley considerou este sinal ir longe demais na outra direção, ou seja, que poderia ser tomado como uma espécie de racionalismo. Neste volume condensado, Wesley pode ter pensado que não havia espaço suficiente para um sinal que pudesse dar algum suporte àqueles que defendiam uma mera religião ‘cabeça’ que contornava o coração.

2) O que Wesley reteve

No início da Parte I, Edwards cita o texto de 1 Pedro 1:8: “A quem, não havendo visto, amais; no qual, não o vendo agora, mas crendo, vos regozijais com gozo inefável e cheio de glória.” Neste texto, Edwards vê os dois exercícios arquetípicos da verdadeira religião: Amor a Cristo e Alegria em Cristo. Com base nisso, ele então formula a proposição que defenderá ao longo de todo o livro, que “a verdadeira religião, em grande parte, consiste em santas afeições”.  O primeiro passo nesse processo é definir o que são as afeições.

De acordo com Edwards, as “afeições da mente” são “os exercícios mais vigorosos e sensíveis da vontade”. Ao expor isso, Edwards prossegue dizendo que Deus imbuiu a alma com duas faculdades: o entendimento que é capaz de percepção e especulação, e a inclinação ou vontade que agrada ou desagrada, aprovando ou rejeitando as coisas percebidas. A mente em relação aos exercícios da vontade é chamada de coração. O ponto crucial aqui é que as afeições não são exercitadas à parte do entendimento.

Edwards torna essa antropologia ainda mais explícita quando diz que é a mente e não o corpo que é a própria sede das afeições. Aqui reside a diferença entre as afeições e as paixões também. As paixões são mais repentinas, têm um efeito mais violento sobre os “espíritos animais”, e neles a mente “tem menos comando”.

A próxima seção da Parte I consiste em vários pontos que tentam mostrar que grande parte da verdadeira religião está nas afeições. Estes vão desde os argumentos mais especulativos (“A religião do céu consiste em muito afeto”) até argumentos baseados em observações do comportamento humano (“as afeições são as molas das ações dos homens” que, é claro, são necessárias para a religião) para argumentos baseados estritamente bíblicos (“a Sagrada Escritura coloca a religião nas afeições”; “As Escrituras colocam o pecado do coração na dureza do coração”). A partir desses e de outros argumentos, Edwards extrai estas inferências:

  1. Que não podemos descartar todas as afeições religiosas.
  2. Que “tais meios são desejáveis, pois tendem a mover os afetos”.
  3. Que “se a verdadeira religião está muito nas afeições, que motivo temos para nos envergonhar, de não sermos mais afetados pelas grandes coisas da religião!” Em outras palavras, devemos ser responsabilizados por ter certas capacidades.

Isso nos leva à Parte II.

Tendo estabelecido as conexões entre a religião verdadeira e as afeições na Parte I, Edwards agora passa para o tema que ocupa a maior parte do livro: distinguir as afeições santas e graciosas daquelas que não são. A Parte II é composta por 12 pontos que tratam de diferentes formas de analisar as afeições. Edwards afirma que esses 12 “sinais” não podem dar um conhecimento certo se as afeições religiosas são ou não “verdadeiramente graciosas”.

Pode-se imaginar o efeito preocupante que esses pontos negativos devem ter tido em muitos dos “cristãos cheios do espírito” de sua época. Entre os mais interessantes, estão os pontos número 1 (que as afeições religiosas são muito elevadas); 2 (que têm grandes efeitos no corpo); 4 (que as próprias pessoas não fizeram as afeições); e 5 (que estão relacionadas às Escrituras). O ponto número 3 pode servir de advertência a todos os teólogos tagarelas de qualquer época (que não é sinal de ser fluente, fervoroso e abundante em falar das coisas da religião).

Os quatro sinais finais, quando vistos juntos, mostram que, para Edwards, nunca podemos saber como a alma de outra pessoa é vista aos olhos de Deus observando seu comportamento exterior. As pessoas podem: gastar muito tempo em Religião e Adoração; louvar a Deus com a boca; ter certeza de que sua experiência é divina; ou convencer outras pessoas de sua piedade, sem ter certeza de que suas afeições são graciosas. Isso mostra um ponto importante sobre todo o livro. Deve ser uma ajuda para a própria busca espiritual, não um guia para o julgamento dos outros. A Parte III do Tratado é talvez a seção mais importante, pois é onde Edwards explica quais são os sinais válidos das afeições graciosas e santas. O primeiro sinal é que as afeições graciosas surgem de influências “espirituais, divinas e sobrenaturais” no coração. Em certo sentido, isso levanta a questão e não ajuda na prática, mas deixa claro que sua epistemologia é uma espécie de empirismo espiritual. O Espírito de Deus dá ao crente um “novo sentido espiritual” através do qual se tem acesso às coisas divinas.

O segundo sinal no resumo de Wesley (quinto sinal de Edwards) afirma que as afeições graciosas são acompanhadas por uma convicção da realidade e certeza das coisas divinas. Essa convicção não é uma espécie de misticismo vago, ou uma certeza sobre a existência das “coisas divinas”, em geral, à la Schleiermacher. É uma “convicção da verdade das grandes coisas do Evangelho”. O título do Tratado pode soar como se o livro tratasse da experiência religiosa genérica, mas, na realidade, a positividade da religião cristã é afirmada constante e abertamente.

O sexto sinal afirma que as afeições graciosas são acompanhadas de “humilhação evangélica”, ou seja, uma convicção de sua própria “insuficiência total, desprezo e odiosidade, com um coração responsável, decorrente da descoberta da santidade de Deus”. Neste ponto, é colocado categoricamente que “aqueles que são destituídos disso, não têm religião verdadeira, seja qual for a profissão que possam fazer”. Para Edwards (e Wesley), a humildade é penetrante, é uma qualidade de todas as outras afeições, e nisso reside uma importante salvaguarda contra o “entusiasmo”.

O material contido no sétimo sinal, no original, é tratado em apenas alguns parágrafos não numerados por Wesley. Talvez porque este sinal simplesmente afirma que as afeições graciosas são acompanhadas de uma mudança na natureza da pessoa afetada, o que realmente já está implícito em vários outros sinais.

O oitavo e o nono sinais mostram que enquanto as afeições falsas tendem a endurecer o coração, as afeições verdadeiramente graciosas promovem o espírito que apareceu em Cristo (#8), uma ternura de espírito (#9). Nestas seções, Edwards dá ênfase especial ao amor, mansidão, quietude, perdão e misericórdia. Desde o início, é claro, Edwards disse que o amor é a primeira e principal das afeições – a “fonte” de toda afeição graciosa – mas não é, senão, a partir deste oitavo sinal que nos é dada uma visão geral de que as afeições adicionais são, de fato, “religiosas”.

O décimo sinal é que as afeições graciosas têm bela simetria e proporção. Embora haja ecos aqui da afirmação filosófica de Edwards de que reconhecemos Deus através da beleza, também há algo mais importante sendo enfatizado. Ao dizer, por exemplo, que o amor a Deus deve ser unido ao amor ao homem, ou que ter esperança não significa abandonar o temor sagrado, Edwards está traçando um roteiro teológico (ou talvez uma “gramática”) das afeições. Essa gramática das afeições pode ser vista como a manifestação emocional das doutrinas cristãs. Em certo sentido, o desnudamento dessa gramática é a principal tarefa teológica de todo o Tratado.

O décimo primeiro sinal afirma que as afeições graciosas aumentam o anseio por realizações espirituais, enquanto as falsas afeições tendem a satisfazer o descanso. Isso pode ser visto como um corretivo contra aqueles que podem pensar que o misticismo de Edwards é do tipo que cultiva “experiências religiosas” para seu próprio bem. Esse tema atinge seu ponto culminante no décimo segundo e último sinal, onde a ênfase é completamente deslocada da experiência interior para os frutos requeridos às afeições: as obras de amor.

Este último sinal, cuja explicação é de longe o mais longo dos doze, tanto no original como no resumo de Wesley, contém muitos argumentos para a prática cristã como a principal de todas as evidências de uma “sinceridade salvadora” na religião. Tanto a prática é enfatizada aqui que Edwards se sente compelido a responder a duas objeções que podem surgir em relação à importância das obras: a objeção de que a experiência cristã deve ser o sinal central da graça, e que enfatizar as obras pode levar a justiça pelas obras. Edwards responde sutilmente a essas objeções mostrando que “experiência” e “prática” não podem estar separadas, e que defender uma “justiça” pela experiência é tão herético quanto uma justiça pelas obras.

Os Temas do Tratado nas Obras Originais de Wesley

Podemos ver pela exposição acima do Tratado de Edwards que Wesley endossou a visão de que a verdadeira religião consiste, em grande parte, de afeições graciosas. Esses afetos graciosos encontram seu ápice no amor e na alegria, mas também consistem em mansidão e perdão, entre outros, todos eles marcados pela humildade. A expressão externa dessas afeições em demonstrações corporais dramáticas não é um sinal de sua santidade, mas elas devem resultar em frutos – obras – para serem consideradas graciosas.

Não é difícil encontrar declarações equivalentes nos próprios escritos de Wesley. Ao comentar Romanos 14:17 [“Porque o reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo”], Wesley diz:

Para o reino de Deus – Ou seja, a verdadeira religião não consiste em observâncias externas. Mas em justiça – a imagem de Deus estampada no coração; o amor de Deus e do homem, acompanhado da paz que excede todo o entendimento, e alegria no Espírito Santo.[13]

Em Gálatas 5:22 [“Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz…”], ele diz que “o amor é a raiz do resto”58 (cf. afirmação de Edwards, de que o amor é a “fonte” das outras afeições). No versículo seguinte, comentando sobre mansidão, há um paralelo inequívoco com a “simetria e proporção” do décimo sinal de Edwards. Aqui Wesley diz que mansidão significa “manter todas as afeições e paixões em equilíbrio”.

Da mesma forma, comentando 1 João 4:19 [“Nós o amamos, porque ele nos amou primeiro”], Wesley diz: “Esta é a soma de todas as religiões, o modelo genuíno do cristianismo. Ninguém pode dizer mais: por que alguém deveria dizer menos, ou de modo menos inteligível?”

Em seus sermões, a ênfase na vida afetiva não é menos evidente. Por exemplo, em “Salvação pela Fé”, a fé salvadora se distingue da fé do demônio por isto: “não é uma coisa especulativa, racional, um assentimento frio e sem vida, uma sucessão de idéias na cabeça; senão uma disposição do coração”.61 Em “A circuncisão do coração”, ele começa a seção final dizendo: “Aqui, então, está a soma da lei perfeita; esta é a verdadeira circuncisão do coração. Que o espírito volte para Deus que o deu, com toda sorte de afeições.”62 Novamente, o sexto sermão da série “Sermão da Montanha” contém o seguinte:

Ao orar para que Deus, ou Seu nome, seja santificado ou glorificado, oramos para que Ele seja conhecido, como Ele é, por todos os que são capazes disso, por todos os seres inteligentes e com afeições adequadas a esse conhecimento; para que Ele seja devidamente honrado, temido e amado por todos acima, no céu, e abaixo, na terra; por todos os anjos e homens, a quem, para esse fim, tornou capaz de conhecê-lo e amá-lo até a eternidade.[14]

Em seu sermão “O Testemunho do Espírito”, Wesley tenta mostrar como o testemunho do Espírito de Deus pode ser distinguido da “presunção de uma mente natural”. Wesley, novamente, soa como Edwards aqui por 1) confiar nas Escrituras como um guia; 2) enfatizar a alegria, mas uma alegria humilde; e 3) manter a importância das obras como sinal da presença da graça, especialmente a “guarda dos Mandamentos”.[15]

Todas as obras de Wesley citadas acima foram escritas antes de ele publicar seu resumo do Tratado de Edwards, então não podemos dizer que esta obra em particular foi germinal para o próprio pensamento de Wesley sobre este tópico. Mas eu acho que é justo dizer que Wesley encontrou no Tratado um resumo útil de insights sobre a natureza da experiência cristã que claramente refletia suas próprias opiniões sobre o assunto. Ele poderia, em sã consciência, recomendar esta obra como se fosse sua a “todos os que desejam andar como Cristo andou”.

A Verdadeira Religião e as Afeições

Wesley reconheceu que, ao enfatizar a importância das afeições como “verdadeira religião”, ele seria parodiado e ridicularizado. Por isso, aludindo ao texto de seu sermão de Atos 26:24 (“E Festo disse em alta voz: ‘Paulo, tu estás fora de ti”), Wesley diz em “A Natureza do Entusiasmo”:

E assim dizem todos os homens que não conhecem a Deus, a respeito de todos os que são da religião de Paulo: de todo aquele que é tão seguidor dele, como ele foi de Cristo. É verdade, há uma espécie de religião, e também se chama cristianismo, que pode ser praticada sem tal imputação, que geralmente se admite ser consistente com o senso comum – isto é, uma religião formal, uma rodada de tarefas externas, executadas de maneira decente e regular. Você pode acrescentar ortodoxia a isso, um sistema de opiniões corretas, sim, e alguma quantidade de moralidade pagã; e, no entanto, muitos não dirão que ‘muita religião os enlouqueceu’. Mas se você visa a religião do coração, se você fala de ‘justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo’, então não demorará muito para que sua sentença seja proferida: “Você está fora de si”.

Mas em sua síntese do Tratado, bem como em sua obra original, Wesley mostrou que se pode falar sobre a vida interior sem perder a razão, pois seu discurso é sempre racional na forma, mesmo quando seu assunto é afetivo. Da mesma forma, ele mostrou que focar nas afeições não implica torná-las a fonte primária de revelação, como testemunha seu uso constante das verificações externas da Bíblia e da tradição. O outro grande perigo de unir a verdadeira religião com as afeições – uma obsessão com a própria experiência interior – também é claramente excluído da concepção de Wesley por causa da sua constante ênfase em que as afeições devem emitir “frutos” comportamentais externos, isto é, tornar o amor e a alegria cristãos manifestos no mundo através de suas ações.

Certamente, a verdadeira religião para Wesley não começa com o coração, seu início é o Evangelho. Nem está o fim da verdadeira religião no coração, pois seu telos na vida humana está nas obras do amor, o “fruto” do coração. Mas até que o coração seja dirigido, o Evangelho cairá em ouvidos surdos e as obras serão um moralismo vazio.

Para Wesley, as afeições eram mais do que uma fonte de erro e confusão, coisas que apenas confundem nossas faculdades “superiores”. Elas não eram vistas como luxos dispensáveis ​​que podem ou não ser permitidos (de acordo com o temperamento de cada um depois que todo o pensamento duro é feito. Tanto a mensagem de Wesley, como a de Edwards, era simplesmente que se o buscador da Verdade não fosse humildemente cheio de amor e alegria sobre o que Deus havia feito por ele, então a mensagem do Evangelho não havia realmente sido ouvida e o cristianismo ainda não havia se enraizado na vida daquela pessoa. Wesley sabia que tal posição o tornava um tanto vulnerável à acusação de defender o “entusiasmo”. Mas sua leitura do Evangelho o convenceu de que esse era um risco que todos os cristãos tinham que correr.

Tradução: Eduardo Vasconcellos
Fonte: WTJ – 19/2, 1984


[1] Jonathan Edwards: Works (New Haven, 1959, Vol. 2, p. 95).

[2] Biblioteca Cristã, (1827), Vol. 30, pág. 310. A abreviação de Wesley apareceu pela primeira vez em suas obras completas (Volume 23; pp. 177-279) 1773, reimpresso em 1801, e mais tarde apareceu na segunda edição de sua Biblioteca Cristã (Volume 30: pp. 307-376) 1827. Veja Frank Baker, ed., A Union Catalog of the Publications of John and Charles Wesley [Um Catálogo da União das Publicações de John e Charles Wesley] (Durham: Duke University, 1966) entrada número 294 para o histórico completo da publicação. Todas as referências neste artigo são para a edição da Biblioteca Cristã. Daqui em diante, RA (W).

[3] Cf. Scientific and Philosophical Writings, Volume 6 de Works (New Haven: Yale University Press, 1980).

[4] Works, Volume 1 (New Haven: Yale University Press, 1957).

[5] Na verdade, há menos de uma dúzia de sermões imprecatórios escritos por Edwards entre os mais de mil que sobrevivem em forma de manuscrito. Veja Sydney E. Ahlstrom: A Religious History of the American People [Uma História Religiosa do Povo Americano] (Garden City, Nova York: Image Books, 1975) p. 370.

[6] (New Haven: Yale University Press, 1968) p. 50. A análise de Delattre é baseada em todas as obras de Edwards, mas ele se baseia mais fortemente em RA, The Nature of True Virtue (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1960)

[7] O expoente mais influente dessa visão foi Perry Miller, especialmente em seu livro Jonathan Edwards (Nova York: Wm. Stoane Associates, 1949).

[8] Veja seu livro Jonathan Edwards: Art and the Sense of Heart (Amherst: University of Massachusetts Press, 1980) especialmente o capítulo 1, “The Calvinist Psychology of the Heart”.

[9] Nehemiah Curnock, ed., The Journal of Rev. John Wesley (London: Epworth Press, 1960) Volume II, pp. 83—84.

[10] Em seu livro John Wesley, na série Library of Protestant Thought (Nova York: Oxford University Press, 1964) p. 16. Os outros três fatores, segundo Outler, foram sua conversão em Aldersgate, seu desencanto com o Moravianismo e a vital reapropriação de sua herança anglicana.

[11] RA, pág. 79. Smith diz que as chances de Wesley e Gordon independentemente fazerem tantas das mesmas omissões e substituições são muito pequenas. A opinião do Dr. Frank Baker, declarada a mim em uma correspondência pessoal, concorda com a de Smith.

[12] Veja Beleza e Sensibilidade no Pensamento de Jonathan Edwards, (citado acima) para discussões aprofundadas sobre beleza primária e secundária, a equivalência de beleza e excelência; e a beleza como o “conteúdo cordial do ser ao ser, em geral”.

[13] Explanatory Notes Upon the New Testament (London: Epworth Press, 1976) p. 575.

[14] Ibid

[15] O sermão de Wesley “O Testemunho do Espírito”, segunda parte. Wesley foi, como Edwards, sempre rápido em enfatizar a natureza graciosa dessas afeições. Ele achava que qualquer ênfase nas afeições que fosse puramente naturalista era herética. Por exemplo, em relação à ética baseada no sentimento de Hutcheson, ele disse que Hutcheson era um “belo escritor; mas seu esquema não podia permanecer, a menos que a Bíblia caisse”. (Journal Curnock, ed., Volume V, p. 492).

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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