Por Eduardo Vasconcellos
A Teologia de John Wesley é muito rica, abrangente e original. Ele bem poderia ser chamado de reformador devido às suas reflexões e as inovações propostas no campo da hermenêutica e da soteriologia vigentes a sua época e ao seu entendimento sobre a ação do Espírito Santo na vida do homem convertido que o leva à maturidade cristã. Várias disciplinas teológicas foram enriquecidas com a luz da sua própria experiência de vida, como no caso da “experiência de Aldersgate”, em 1738, quando a sua compreensão acerca da fé levou-o a uma nova interpretação da salvação, sintetizada na expressão “fé que opera pelo amor”. Em termos teológicos, enquanto que antes de 1737 Wesley acreditava que a santificação precedia a justificação, depois de 1738 Wesley inverteu a ordem. Por outro lado, esse testemunho do Espírito fez com que Wesley acrescentasse à hermenêutica anglicana, baseada nas Escrituras, na Tradição e na Razão, o quarto lado daquele que ficou conhecido como quadrilátero wesleyano, a Experiência. Para ele, a fé Cristã é algo experiencial e a graça de Deus tem que ser apropriada individualmente, resultando em segurança e transformação de vida e coração.
Ao longo de sua vida Wesley teve que explicar várias vezes o que ele quis dizer com Perfeição Cristã, chegando ao ponto de ser perseguido por isso. Mas parece que essa inquirição serviu para organizar melhor e de maneira mais coerente sua teologia. Desse modo, o ponto de partida de seu raciocínio é o homem caído e pecador a quem Deus quer restaurar conforme sua imagem. Por causa do seu amor incondicional, Deus oferece a vida eterna ao homem, a sua salvação. Mas Wesley entende a salvação com um processo contínuo, como ele mesmo diz: “a salvação de que se fala aqui pode se estender à inteira obra de Deus, desde o despontar da graça na alma até à sua consumação na glória” [Sermão O Caminho Bíblico da Salvação]. Ou seja, diferentemente da teologia reformada cujo foco está na necessidade de perdão de culpa que se encontra na justificação, e em Deus como Juiz e Justificador, Wesley foi muito mais além, considerando toda a obra de Deus como sendo inclusiva da justificação e santificação.
A forma como Deus opera no homem e o homem coopera com Deus foi um entendimento crucial dentro da teologia wesleyana. Começando pela definição de Graça, a qual segundo Wesley pode ser distinguida em duas, a preveniente e a convincente, como ele explica: “salvação começa com o que é usualmente denominada (e muito propriamente) graça preveniente, incluindo o primeiro desejo de agradar a Deus, o primeiro alvorecer da luz concernente à sua vontade, e a primeira convicção passageira leve de ter pecado contra ele. (…) Salvação é conduzida por graça convincente, usualmente, denominada, nas Escrituras, de arrependimento, o qual traz uma larga medida de autoconhecimento, a mais completa libertação do coração de pedra” [sermão 85, Operando Nossa Salvação]. Depois dessa manifestação da graça é que “nós experimentamos a salvação cristã adequada”, a justificação e a santificação.
Mas entre a justificação e a santificação se dá a regeneração ou o novo nascimento. “Embora seja permitido que a justificação e o novo nascimento sejam inseparáveis entre si, em um determinado momento do tempo; ainda assim, eles são facilmente distinguidos, como sendo, não a mesma coisa, mas coisas de naturezas amplamente diferentes. Justificação implica apenas uma mudança relativa; o novo nascimento, uma mudança real. Deus, ao nos justificar, faz alguma coisa por nós; em nos criar novamente, Ele faz a obra em nós. O primeiro transforma nossa relação exterior para com Deus, de modo que, de inimigos, nos tornamos filhos; através do último, a transformação acontece no mais profundo de nossa alma, de maneira que os pecadores se tornam santos. Um nos restaura para o favor, e, o outro, para a imagem de Deus. Um tira fora a culpa; o outro, o poder do pecado: Assim sendo, embora eles estejam juntos, num determinado momento da vida, ainda assim, eles são de natureza completamente distintas” [Sermão O Grande Privilégio dos que são nascidos de Deus].
Neste ponto é necessário enfatizar que embora a teologia wesleyana não seja antropocêntrica, humanista, ou pelagiana – como alguns insistem, ela dá ao homem um papel de protagonista e isso se deve ao modo como Wesley entende o homem criado por Deus, moralmente capaz. Segundo Wesley, a imagem de Deus no homem pode ser dividida em três atributos: 1º, a imagem natural, que a seu modo é subdividida em compreensão (poder de distinguir a verdade da falsidade), vontade (sentimentos e disposições guiados pela correta compreensão, em direção ao bem) e a liberdade (capacidade de escolher bens e propósitos que denotem virtude e santidade); 2º, a imagem política, que denota o domínio e a superioridade do homem sobre a natureza e as outras criaturas; e 3º, a imagem moral, que é aquela que determina o padrão de integridade e distingue o homem do restante da criação. Ela forma o contexto para a possibilidade do pecado ou da santidade. Para Wesley, a lei moral não é o fundamento do relacionamento entre Deus e a humanidade, não obstante, “é o padrão que expressa a integridade desse relacionamento e que revela a graça e a justiça (e também o pecado) pelo aquilo que são.” [1]
Wesley sempre aceitou o fato de o pecado ter desvirtuado a imagem divina tornando o homem corruptível e mortal, física e espiritualmente. Ele não discordou do conceito de depravação total formulado pelos teólogos ocidentais anteriores (Agostinho, Lutero e Calvino), segundo o qual o homem estava irremediavelmente perdido, que sozinho não seria capaz de reconciliar-se com o criador e que pela fé em Cristo ele seria justificado. Mas, nesse sentido, o interesse maior de Wesley foi afirmar o processo contínuo de restauração do homem a imagem de Deus, iniciado pela fé, à luz do entendimento que ele tinha do relacionamento dinâmico e cooperativo que temos com Deus na nossa própria salvação e que é manifesto na santificação.
Como a graça preveniente traz alguns benefícios e restaura a noção de consciência e o livre-arbítrio – e o homem pode resistir a ela ou não, o homem, através da ação do Espírito Santo, busca uma vida de santidade. Assim, “por meio de Cristo e do Espírito Santo, que habita no crente, a ‘inclinação para o pecado’ do coração convicto e contrito pode ser purificada, e a ‘inclinação para a obediência em amor’ pode tornar-se a força motriz da vida” [2] É por isso que Mildred Wynkoop diz que “o que se crê acerca da natureza humana e da graça de Deus terá relação direta com o tipo de vida cristã que se experimenta”. [3]
Por essa compreensão da natureza humana, Wesley se afasta cada vez mais do conceito de santificação que existia na sua época, cujo foco principal estava na posição em Cristo do crente justificado. De acordo com essa interpretação, os crentes são “santos em Cristo”, mesmo que eles cometam pecado. Podemos entender “Santos por posição” como aqueles que estão eternamente separados para Deus pela redenção e que, pela sua posição, são santos [4] desde o momento que creram. Se admite que esse crente está sendo purificado pelo Espírito e que na consumação dos séculos ele será completamente santificado. No sermão Justificados pela fé, Wesley declara seu entendimento com relação ao assunto: “Isso chama-se santificação, que é em verdade, até certo ponto, o fruto imediato da justificação embora sendo um dom distinto de Deus, um dom de natureza totalmente diferente. Enquanto que a justificação refere-se ao que Deus faz por nós através do seu Filho, a santificação é o que ele opera em nós por intermédio do seu Espírito.”
A Inteira Santificação, ou Perfeição Cristã, passa a ser viável agora, pressupondo uma disposição interior do homem em duas vias: numa, ela se encarrega de refrear os desejos e as intenções pecaminosas, na outra, viver a plenitude o amor segundo a Bíblia revela, a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo. Assim, o conceito wesleyano da natureza da perfeição, se expressa na possibilidade real de praticar a pureza de intenções, na necessidade de imitar Cristo como modelo de vida santa, e no amor por Deus e pelo próximo como a “perfeição” definitiva e normativa. Essa plenitude do amor Wesley compreende também como uma segunda obra da graça.
Como dissemos anteriormente, toda a teologia wesleyana é desenvolvida baseada na proposição de que o homem trabalha em cooperação com Deus desde o início de sua salvação, numa progressão espiritual gradual. Randy Maddox sugere que em vez de encaixar Wesley no modelo tradicional de ordo salutis [5] , é mais correto falar de Wesley como possuindo uma via salutis [6]. Isto significa que em vez de conceituar a vida Cristã como uma série de passos, uma “ordem de salvação,” seria melhor conceituá-la como um “caminho de salvação,” como um processo envolvendo de momento a momento a atividade de Deus assim como a nossa resposta.
O presente estudo, fruto do trabalho acadêmico de Mateo Lelievre, é rico em detalhes sobre a vida de John Wesley e uma das tentativas de sistematizar a sua teologia uma vez que Wesley não foi um teólogo sistemático. A maior parte da produção teológica de Wesley encontra-se em seus sermões e por isso, às vezes, ele é chamado injustamente de teólogo paroquial ou teólogo do povo. Aqueles que abordam seus escritos dessa forma, certamente não estão considerando o conteúdo abrangente e revelador de seus textos.
Por isso, o leitor atento e o estudante sedento notarão nas seguintes páginas que a maneira peculiar como Wesley tratou os principais temas relativos a fé cristã, não fizeram dele um teólogo omisso, pelo contrário, todo seu empenho foi em trazer um entendimento espiritual da vontade de Deus para o homem e da maneira como Ele opera para reconciliá-lo a si através de seus dons: a graça, a fé e o amor. Uma idéia a respeito disso se tem ao observar a extensão de seus textos soteriológicos. No âmbito do ensino, Wesley também se destacou e chegou a organizar um curso com requisitos e doutrinas para o ministério, o que seria semelhante a um curso básico de teologia como os que são oferecidos nos dias atuais.
Em vários outros aspectos Wesley foi original e, principalmente, seus estudos influenciaram não somente a sua própria geração – provocando mudanças extraordinárias, mas o vento do avivamento que soprou naqueles anos ainda consegue impelir muitos homens de Deus a uma vida piedosa e justa, trazendo renovo à igreja e a academia. Por essas razões, sua leitura torna-se obrigatória a qualquer um que queira se aprofundar no estudo bíblico e teológico e na história da Igreja.
* Apresentação do livro: Teologia de John Wesley, de Mateo Lelievre. Tradução de Jairo Rocha. Maceió: Sal Cultural, 2015.
[1] Collins, Kenneth J. Teologia de John Wesley – o amor santo e a forma da graça. Rio de Janeiro: CPAD, 2013
[2] Dieter Melvin E. A Perspectiva Wesleyana. In: Gundry, Satnley (org.). Cinco Perspectivas sobre a Santificação. São Paulo: Vida, 2006, p. 24.
[3] Wynkoop, Mildred Bangs. Fundamentos da Teologia Armínio-wesleyana. Campinas: CNP, 2004, p. 119.
[4] Purkiser, Westlake T. Conceptos en conflicto sobre la Santidad. Kansas: CNP, 2009.
[5] Ordo salutis (latim: “A ordem da salvação”) refere-se a uma série de passos conceituais dentro da doutrina de salvação cristã. Tem sido definida como “um termo técnico da dogmática protestante para designar as etapas consecutivas no trabalho do Espírito Santo, na apropriação da salvação.”
[6] Maddox, Randy L. Responsible Grace: John Wesley’s Practical Theology. Nashville: Kingswood Books, 1994