Por Magno Paganelli

No Brasil, durante décadas, uma pessoa que se interessasse por aprofundar seus conhecimentos em determinadas áreas deveria, necessariamente, recorrer a obras estrangeiras. Naturalmente, houve avanços, e alguns clássicos utilizados em cursos nos Estados Unidos e na Europa começaram a ser vertidos para o vernáculo e, assim, sinalizou-se um avanço que aconteceu timidamente. Essa timidez na ampliação do catálogo de obras fundamentais é compreensível, por vários fatores, que vão desde o custo até a própria demanda. Há um sentido de urgência e necessidade entre leitores, mas também em profissionais do segmento livreiro, que desejam retorno rápido dos seus investimentos. Mas o retorno é lento, o que inviabiliza a produção constante, de modo que a carência por obras basilares ainda não está bem resolvida em muitas disciplinas ainda hoje.

Considerando o presente tema, História, e sua especificidade, História da Igreja Primitiva, nos últimos anos surgiram umas obras relativamente consistentes, mas publicadas por editoras de menor porte, aquelas cujos editores são apaixonados por questões mais pontuais e deixam um pouco de lado textos mais genéricos e apelativos para dedicarem-se a pesquisas que merecem uma atenção especial. Nessa safra, vimos serem publicadas obras sobre o comportamento e o ensinamento do período antigo, o primeiro século, quando o Cristianismo ainda era considerado um movimento, não uma instituição.

A reedição de Vozes do Cristianismo Primitivo, dos historiadores da Igreja E. Glenn Hinson e Paulo Siepierski é uma dessas obras, ao lado de História da Igreja Primitiva até o ano 500, do erudito britânico J. W. C. Wand e História da Igreja Medieval de 590 a 1500, da professora Margareth Deanesly, também britânica. Houve reedições de clássicos, cobrindo um arco temporal mais amplo (e, portanto, mais superficial), como História do Pensamento Cristão, em três volumes, de Justo L. González, uma reedição da História Ilustrada do Cristianismo, do mesmo autor, além de outras obras menos expressivas ou repetindo as mesmas abordagens.

Fora as produções de autores cristãos, a Academia também tem produzido dissertações e teses sobre questões específicas, desde as primeiras décadas e séculos do Cristianismo, e, embora as questões levantadas recebam um tratamento científico, por vezes vem comprometidas com visões ditadas por ideologias que desconsideram alguns dos principais elementos quando estudamos uma religião: os aspectos fenomenológicos e a dinâmica da fé. Em meu trânsito pela Academia tenho participado de Grupos de Trabalho sobre o Oriente Médio e o Islã e percebo a maneira, por vezes, superficial como são tratadosos aspectos essenciais a serem considerados em uma comunidade de pessoas que professa um credo. Assim também acontece com pesquisas sobre o Cristianismo Primitivo, de modo que o valor histórico e sociológico desses trabalhos é importante, mas me parece deixar a desejar quando leio um relatório e noto a falta que faz uma visão de dentro, a partir das considerações possíveis feitas por alguém que “fez a lição de casa”, que se inteirou do impacto que a fé provoca, das mudanças que promove e a esperança que produz.

O professor Alan Kreider (1941-2017) foi um autor que não ignorou os rigores da pesquisa científica, mas soube dosar o conhecimento que tinha como alguém que foi tocado pela mesma fé das comunidades sobre a qual escreveu. Com passagem pelas Universidades de Harvard, Princeton e de Londres, concluindo a sua carreira acadêmica como professor emérito de História da Igreja e Missão, além de dotado de um espírito crítico e investigativo incansável, acumulou nos anos de docência e dedicação ao trabalho que a sua disciplina exigiu, um tato para a produção literária e uma fluidez sedutora na composição de sua obra. Seu texto nos prende a atenção como se estivéssemos na sala de aula daquele professor da nossa matéria preferida.

Na presente obra, O Paciente Fermento da Igreja Primitiva – o improvável crescimento da Igreja no Império Romano, o prof. Kreider pinta quadros realistas e emocionantes, como quando descreve a tentativa de martírio de Perpétua e Felicidade. Mas ele também é crítico, como em sua abordagem sobre os ingredientes atrativos da igreja que despertaram a atenção dos cidadãos do Império para as virtudes dos santos, especialmente a paciência.

Kreider não se deixa levar pelas narrativas fáceis, de explicação consensual de que somente a perseguição serviu como fermento para o crescimento da Igreja. Longe disso. Das análises que tenho lido sobre o período, esta me parece ser a mais interessante, não apenas pela construção dos argumentos – o que neste caso se tornou tarefa de somenos importância – mas pela riqueza do próprio trabalho investigativo que fez e o aprofundamento nas fontes pesquisadas. Não foi à toa que Howard Snyder, que também tem uma excelente obra sobre as comunidades cristãs do passado e do presente e sua relação com o Reino de Deus hoje, enfatizou que O paciente fermento da Igreja Primitiva foi a principal obra publicada em 2016 e a mais importante que ele leu nos últimos anos.

O prof. Kreider lidou por décadas com a pesquisa sobre os três primeiros séculos da Igreja e acumulou material nas fontes primárias dos Pais e dos primeiros apologistas, isto é, autores de Roma, Grécia e Norte da África: Eusébio, Cipriano, Justino, Tertuliano, Gregório, Lactâncio, Orígenes, Atenágoras, Clemente, as Tradições Apostólicas, o Didaquê, indo até Agostinho, entre outros, cotejando com pesquisas críticas recentes, feitas por autores de diferentes matizes teológicos. Isso empresta um embasamento sólido a presente obra e a torna robusta, rica em referências e indicações de futuras leituras para aprofundamento nos temas cobertos, que não são poucos, até o período pré-Constantino, quando a Igreja se institucionalizou.

A demonstração que faz da prática da paciência entre os cristãos da Igreja Primitiva, como virtude que não estava presente entre os cidadãos de cultura greco-romana ou norte africana, é de uma utilidade inegável e oportuna para a nossa igreja do século XXI. Não vivemos num tempo e numa cultura digital acelerada, sofrendo com o imediatismo e uma pressa incorrigível até para ver o término dos cultos? Penso que somente isso bastaria para indicar o valor da obra e chamar a nossa atenção para corrigirmos práticas bastante desalinhadas do espírito cristão. Mas há muito o que dizer a respeito da obra. Para demonstrar sua hipótese, Alan Kreider acaba por cobrir outros aspectos do cotidiano da Igreja, seja em seu costume de reunir-se em casas, dando detalhes novos sobre essas reuniões; seja por apresentar as partes que compunham o culto, mensagem, louvor, adoração e especialmente o ensino catequético e a ação social indiscriminada, fosse para os da fé ou para os de fora.

Aliás, esse é um dos pontos altos do livro: demonstrar como o cristão era em suas relações sociais entre a população não cristã, primeiro no socorro aos necessitados, depois no comportamento e no testemunho que davam da fé e da regeneração, despertando a atenção para quem eram e no que criam aquelas comunidades. Tertuliano chegou ao ponto de mencionar o “Vide” (Vejam!) dos vizinhos dos cristãos em seu amor uns pelos outros, e o prof. Kreider acrescenta que não era o que ouviam dos cristãos, mas o que “viam” dos cristãos que atraiu muitos seguidores e discípulos que foram acrescentados à Igreja do período. Que isto sirva de advertência para nós, que vivemos um tempo quando muitos querem falar aqui e ali, mas pouquíssimos querem mobilizar ou mover um dedo para agir de maneira silenciosa, como fermento, numa sociedade esfacelada moralmente como a nossa. Isso sem falar da influência da sociedade na Igreja, diferente do que ocorria naqueles primeiros séculos, quando os candidatos ao batismo se submetiam até mesmo a um ensinamento por três anos, demonstrando uma conversão profunda, em vez de conversões por modismo ou conveniência.

Para terminar, e aproveitando que mencionei o comportamento como distintivo desses primeiros cristãos, mais do que a mensagem que pregavam, a presente obra vem desmistificar o que já tenho comentado algumas vezes sobre a apologética. Hoje há uma linha de produção, como uma indústria, para desqualificar e rotular seitas e heresias; consequentemente, há uma classe de cristãos que se intitulam apologistas, defensores da fé e do Evangelho. Nesta obra, mencionando as suas fontes e organizando-as sistematicamente, podemos aprender quem foram e qual o fundamento dos trabalhos dos primeiros apologistas, que nada têm a ver com os modernos apologistas. Novamente recorrendo a ortopraxia cristã, mais do que a ortodoxia, os apologistas apresentavam ao público mais amplo, especialmente as suas obras compostas e endereçadas aos Imperadores, a fim de demonstrar como eram e como se comportavam os cristãos em seu espírito manso, dedicados uns aos outros, submissos ao Senhor Jesus. Isso certamente deveria nos desafiar a uma profunda, crítica e urgente reflexão sobre o que temos produzido e com que finalidade, uma vez que poucas conversões temos conseguido contabilizar por meio dos nossos “mais sinceros” esforços, se comparados com o improvável crescimento assustador que a Igreja teve, imersa que estava em uma cultura que lhe era contrária, hostil muitas vezes, mas onde a Igreja se estabeleceu, e deixou lições e exemplos a serem copiados hoje.

No mais, este é um livro para ler e reler, com atenção, pois certamente tem muito a nos ensinar. Que leitores leigos, acadêmicos, professores, alunos e pastores possam extrair o melhor da presente obra, que seguramente chega em boníssima hora para a Igreja brasileira.

Boa leitura a todos.

 

Magno Paganelli é Escritor, professor de História Comparada das Religiões e Novo Testamento, doutorando em História Social (USP)

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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