Por José Eduardo Franco
É um dado antropológico fundamental: todo o crescimento, todo o aperfeiçoamento humano exige exercício,
prática e esforço. A educação, o acesso a um estádio de vida superior, a uma profissão, a uma competição desportiva exige exercício assíduo sob pena do fracasso acontecer. Se isto é verdade para a vida pessoal e social ainda mais importante se torna para a vivência religiosa, para o crescimento na Fé e no conhecimento de Deus.
Todas as religiões propõem caminhos, metodologias, estratégias, no fundo, exercícios vários para o aperfeiçoamento
da vida dos que acreditam na doutrina ensinada. A esse exercício religioso convencionou-se chamar ascese. Geralmente este conceito tem sido marcado por muita carga negativa, com tonalidades sombrias, porque muito associado à ideia de
sofrimento, de negação, de despojamento, de sacrifício, de desprezo pela vida, de anulação da pessoa, consoante a
metodologia ascética proposta pelas diferentes religiões e confissões religiosas. É, aliás, comum, no imaginário colectivo, ligar, do ponto de vista semântico, prática religiosa a ascese, a sacrifício. Esta imagem associada ao religioso torna muitas vezes a religião pouco simpática, particularmente nas sociedades hedonistas e consumistas em que hoje vivemos.
No entanto, assim como noutras dimensões existenciais do universo humano (vida profissional, desportiva, econômica,
familiar, etc.), também no plano religioso a exercitação constante é decisiva para garantir qualificação e aperfeiçoamento. Recorde-se que a palavra ascese é de origem grega (verbo: askéo, substantivo áskêsis, askêtês) e significa, na sua etimologia primeira, um exercício para conseguir uma habilidade, uma habilitação, uma competência. Inicialmente era uma terminologia usada no campo desportivo e militar. Só mais tarde será transposta, adoptada e afirmada culturalmente como um termo técnico para designar a exercitação proposta por uma metodologia religiosa de crescimento espiritual, implicando práticas de jejum e abstinência de alimentos, de sexo, de lazeres vários e até de convívio social.
O radicalismo no domínio da ascese conduziu a excessos, como se pode observar ao longo da história das religiões. Esse excesso ou radicalismo na abordagem e na prática da ascese ainda hoje ocorre em certos sectores de algumas religiões, contribuindo para levantar questões em termos da garantia da dignidade humana, quer no plano da integridade física e psicológica, quer no plano respeito pelos Direitos Humanos em geral. O radicalismo ascético tem sido especialmente praticado por religiões, filosofias ou movimentos religiosos dualistas que desprezavam a vida humana enquanto existência terrena e corporal: são os casos mais conhecidos do Maniqueísmo, de várias formas de Gnosticismo no âmbito do Cristianismo, e de algumas correntes do Islamismo, do Hinduísmo e do Budismo. Destas práticas vem muitas vezes a carga negativa com que a ascese religiosa está marcada nos estereótipos que abundam no imaginário colectivo dos nossos dias, alguns deles muito explorados e difundidos mediaticamente pela televisão e pela imprensa escrita.
Do ponto de vista cristão, universo religioso em que nos situamos, é fundamental uma revisão do sentido profundo da ascese, como uma proposta de exercício que visa acima de tudo elevar o homem até Deus, através da abertura ao Espírito. Importa, no esforço de renovação do sentido autêntico da ascese, voltar às raízes bíblicas e proto-cristãs e limpá-la de muita roupagem cultural, filosófica que a deturpou e a tornou mais pagã do que cristã. O modelo é sempre Cristo e a sua vida na terra.
Ascese é, por excelência, o exercício de elevação que através de práticas que sigam o caminho da moderação e desenvolvam o auto-domínio, o combate a todo o tipo de excesso que destrua e desqualifique o ser humano. A ascese deve ser entendida como um exercício que promova a valorização da vida humana, garantindo a sua abertura ao transcendente. Mas a ascese não é, em sentido cristão, alheamento do universo humano, das sociedades, dos problemas reais, antes deve
capacitar o homem inundado pela graça divina para torná-lo mais atento, solidário, empenhado na construção da sociedade terrena dos homens e orientá-la para um horizonte de transcendência.
À luz desta exigência de repensar e refundar o entendimento da ascese cristã, o o autor trabalhou cuidadosamente na elaboração deste livro que agora oferece aos leitores interessados em conhecer uma determinada linha de compreensão da ascese e as suas implicações. Trata-se de uma obra muito bem escrita, clara, bem fundamentada, teologicamente sólida que tem tanto de conhecimento informado como de atenção pedagógica a quem vai ler e estudar esta temática. Situando-se e defendendo a tradição protestante a que é fiel, Eduardo Vasconcellos apresenta a perspectiva teológica em relação a aspectos, muitos deles controversos, das várias visões cristãs da ascese. Aqui são tratadas e debatidas as questões do jejum, da abstinência, da castidade, do celibato, com incursões bem conseguidas na história e na teologia comparada das religiões.
Eduardo Vasconcellos afirma a sua perspectiva analítica através de uma argumentação teológica de tipo apologético, sempre enraizada na letra bíblica. A sua proposta de compreensão do caminho ascético cristão é desenvolvida a partir da evocação dos textos sagrados e seu comentário iluminado pelo pano de fundo doutrinal de filiação protestante em que o autor se inscreve, enquanto teólogo. A partir de um ângulo de análise, o Professor Eduardo Vasconcelos procura discutir e rebater a perspectiva teológica católica, em especial o caminho ascético exigido aos sacerdotes católicos da abstinência
sexual, diferenciando castidade de celibato.
Em suma, estamos perante uma obra de teologia catequética e apologética protestante fiel à matriz da teologia moral e ascética fundada na reforma luterana realizada no século XVI, que teve como grandes mentores Lutero e Calvino, tendo estes revolucionado a antropologia teológica cristã na modernidade e introduzido no seio do cristianismo um importantíssimo debate em torno da relação do homem com Deus e de Deus com o homem, debate esse que ainda hoje continua.
Estamos diante de um manual bem elaborado, que muito contribuirá para a formação dos crentes que seguem ou que pretendem aderir ao ideário confessional religioso de que o autor é mensageiro.