Por Glauco Magalhães

A Reforma Protestante foi marcada por uma profunda ênfase na doutrina e na experiência da justificação pela fé. Lutero falou do momento em que encontrou paz com Deus mediante a fé em Jesus Cristo, dizendo que se “sentira renascendo” e isso era como se “as portas do paraíso lhe houvessem sido abertas”. Essa experiência, que lhe ocorrera enquanto meditava sobre o primeiro capítulo da Carta de Paulo aos Romanos, ficou conhecida como a “experiência da Torre”.

Ao lado de livros como “O Cativeiro Babilônico”, nos quais o reformador fazia críticas doutrinárias e institucionais à Igreja Romana, Lutero escreveu obras como “A Liberdade Cristã”. Nela, destacou a “fé que opera pelo amor” (Gálatas 5: 6) e assemelhou nossa identificação com Cristo ao casamento. A relação entre a fé e o amor santificador veio a ser mais tarde uma ênfase do metodismo, enquanto a metáfora do casamento (a partir do livro bíblico do “Cântico dos Cânticos”) foi o paradigma da espiritualidade nos místicos cristãos da Idade Média e em alguns Pais da Igreja na Antiguidade. Esse aspecto mais prático (devocional) da teologia de Lutero foi sendo cada vez menos destacado com o avanço dos conflitos institucionais com Roma e a presença dos Príncipes alemães nos acordos para solucioná-los. O pietismo, como movimento, surgiu para redescobrir o elemento experimental e devocional da Reforma.

Além dos escritos dos precursores da Reforma e dos Pais da Igreja, a literatura mística medieval teve uma influência marcante no pensamento luterano. Felipe Jacob Spener lembraria a presença de citações de Johann Tauler nos primeiros escritos de Lutero. O pietismo redescobriria também pelo filtro da Reforma o valor da “devoção moderna” (devotio moderna), presente nos escritos de Tomás de Kempis (falecido em 1471).

A Reforma passou por três fases: uma devocional (experimental), uma acadêmica (disputas e debates) e uma política (negociações e acordos). Passou pelo mosteiro, pelas universidades e chegou aos palácios. A terceira fase envolveu as negociações que levaram ao princípio da territorialidade: a religião adotada pelo príncipe seria a religião de seu território e dos respectivos cidadãos. Quem quisesse mudar de convicção religiosa deveria migrar para outro território. Com esse princípio, as pessoas começavam a se identificar como protestantes pelo príncipe a que estavam submissas. A fé confundia-se com o legado cultural do lugar. Tal situação gerou um formalismo religioso acompanhado de antinomianismo.

No século XVII, Filipe Jacob Spener escreveu o seu livro intitulado “Desejos de Piedade” (1675), do qual se originou o termo “pietismo”. Spener, apesar de já ser formalmente da igreja, tivera uma experiência marcante de conversão. A partir dela, protestava contra a crença popular de que a pessoa podia se considerar cristã pelo simples batismo infantil. Ele destacava a exigência do novo nascimento como uma experiência pessoal.

Spener não se opôs a teologia, mas insistiu na importância de os estudos acontecerem em um contexto de fervor espiritual. Ele enfatizou a fé viva contra a ortodoxia morta. Antes de alguém ser legitimamente um teólogo precisava de uma experiência legítima de conversão.

Spener introduziu um sistema de grupos de estudos bíblicos nos lares e ressaltou o sacerdócio universal dos crentes. Os seus “colégios de piedade” inspiraram as “sociedades metodistas” na Inglaterra. A sua preocupação era a de formar uma igreja de regenerados dentro da igreja estatal (ecclesiola in ecclesia). O pietismo alemão contribuiu para as características do evangelicalismo anglo-saxão e formou a cultura avivalista.

O convertido mais importante de Spener foi A. H. Francke (1663-1727), que se tornou outro grande líder do movimento. Francke teve um grande papel no estabelecimento de uma nova universidade dentro da orientação pietista: a Universidade de Halle.

Os pietistas, ao contrário do que se pensa, não defenderam uma religiosidade individualista. Os alemães foram conhecidos por seu impacto universitário e pelas obras sociais.  Mais tarde, o metodismo seguiria o mesmo caminho. John Wesley disse que o cristianismo era tanto a “religião do coração” como uma “religião social”, destacando a redenção do indivíduo e a luta contra o pecado social.

A influência do pietismo alemão foi poderosa na história protestante. O afilhado de Spener, o Conde Zinzendorf, importante líder dos irmãos morávios, trouxe grande impulso ao movimento missionário evangélico. Cada grupo de vinte cinco irmãos morávios sustentava um missionário. William Carey confessou ter tido a influência do exemplo morávio no seu zelo missionário. Através dos irmãos Morávios, John Wesley se converteu na Inglaterra, e, pelo seu ministério, a Inglaterra conheceu o maior avivamento espiritual de sua história.

Em novembro de 1729, por iniciativa de Charles e John Wesley, surgiu na Universidade de Oxford um grupo de jovens (estudantes) que formaram uma sociedade que ficou conhecida como o “Clube Santo”. Os seus membros eram: John Wesley, Charles Wesley, Sr. Morgan e o Sr. Kirkman. Depois, também se uniram ao grupo o Sr. Ingham, o Sr. Broughton, o Sr. Clayton, George Whitefield e James Hervey. Eles estudavam juntos o Novo Testamento, visitavam os prisioneiros na prisão e os pobres na cidade. Procuravam encaminhar crianças abandonadas para a escola, ajudavam os doentes e necessitados, bem como distribuíam Bíblias e Livros de Oração aos que não possuíam. Receberam inúmeras críticas de outros estudantes, que os chamavam de “entusiastas”, “fanáticos” e “perturbadores de Israel”. Foram também apelidados de “Metodistas de Oxford” ou “Clube Santo”.

O pai de John Wesley disse em uma carta: “Eu ouvi dizer que o meu filho John tem a honra de estar sendo intitulado ‘o Pai do Clube Santo’. Se assim o é, estou certo de que eu devo ser o avô, e não preciso dizer que prefiro ter um dos meus filhos dignificado e distinguido com este título do que com de ‘Sua Santidade’”.

Apesar de todo o zelo religioso, os irmãos Wesley e George Whitefield descobriram mais tarde que precisavam de uma experiência pessoal de salvação. Após cada um encontrar o seu caminho pessoal de conversão, eles tornaram-se inflamados pregadores (no caso de Charles, um cantor e compositor também) que sacudiram os dois continentes.

Recusados pelas igrejas em seus púlpitos, tornaram-se pregadores ao ar livre. Em 1744, porém, John Wesley pregou uma mensagem na Capela de St. Mary, em Oxford, diante da Universidade. O título da pregação foi “O Cristianismo das Escrituras”. Ele dirigiu-se aos diretores da Universidade de Oxford, bem como aos professores, membros, tutores e outros residentes. Seguem trechos da mensagem:

 

“… Deixai-me, portanto, perguntar-vos, com terno amor e em espírito de humildade: É esta cidade de Oxford uma cidade cristã? É o Cristianismo, o Cristianismo das Escrituras, encontrado aqui? Somos nós, como uma comunidade de homens, tão cheios do Espírito Santo ao ponto de desfrutarmos em nosso coração e demonstrarmos nas nossas vidas os genuínos frutos do Espírito? Sãos todos os magistrados, os diretores e governadores dos colégios e corporações, e suas respectivas sociedades (para não falar dos habitantes da cidade) de um só coração e alma? É o amor de Deus derramado em nossos corações?… Vós, honrados senhores, que sois especialmente chamados para formar a sensível mente dos jovens, para retirar delas as sombras da ignorância e erro, e treiná-los para serem herdeiros da salvação, estais vós cheios do Espírito Santo e daqueles frutos do Espírito, os quais o vosso importante ofício requer tão indispensavelmente?”

 

Após esse sermão, John Wesley escreveu em seu diário: “Eu acredito que preguei hoje pela última vez na capela de St. Mary. Que seja assim. Eu estou agora limpo do sangue desses homens. Tenho minha consciência livre de culpa. O oficial veio depois a mim e disse-me que o vice-chanceler o havia mandado pedir as notas do meu sermão… Desse modo, entretanto, essas notas acabaram sendo lidas, provavelmente mais de uma vez, por todo homem de posição importante na universidade”.

A intrepidez, a confrontação pessoal e a linguagem direta caracterizaram a pregação dos metodistas.

Contra o antinomianismo, pregava-se uma fé viva. John Wesley via a experiência da justificação pela fé não apenas como uma libertação das angústias e frustrações resultantes da busca por justiça própria, mas como um caminho para servir a Deus, motivado por amor, gratidão e devoção. A fé salvadora foi reconhecida como a “fé que opera pelo amor” (Gálatas 5: 6) e que nos permite dizer “não sou eu quem vive mais, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2: 20). Tratava-se de uma confiança pessoal no Jesus que “me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gálatas 2: 20).

Muitos procuraram depreciar o pietismo com caricaturas como o fizeram com os puritanos, enquanto outros procuraram associá-lo com o teólogo liberal Friedrich Schleiermacher ou com o filósofo Immanuel Kant. Essas associações, porém, não são adequadas. O fato de alguém ter recebido uma educação pietista ou ter nascido em contexto pietista não o faz um representante autorizado do movimento. O mesmo equívoco aparece em Max Weber, quando, por exemplo, cita um pensador deísta para representar a ética puritana só porque foi criado dentro do contexto cultural do puritanismo.

A obra de Roger E. Olson e Christian T. Collins Winn, intitulada “Reconsiderando o Pietismo”, preenche uma grande lacuna na nossa historiografia protestante. Revela ainda que somos mais devedores do pietismo do que muitos imaginam, além de expurgá-lo de caricaturas inadequadas. Parabenizo, portanto, a Editora Sal Cultural e ao ilustre amigo, Pr. Eduardo Vasconcellos, por essa tão importante iniciativa.

No Brasil, em reação aos desmandos de algumas igrejas neopentecostais, muitos procuraram recuperar um paradigma teológico confiável, o que gerou um grande interesse por palestras, seminários e disputas acadêmicas. Vejo, entretanto, um outro perigo à frente: o academicismo. Nele, a palestra substitui a pregação e a exibição da biblioteca substitui o oratório. O pietismo traz um bom remédio para esses desequilíbrios, incentivando a “renovação da mente” (Romanos 12: 2) e, ao mesmo tempo, chamando-nos a “conhecer o amor de Cristo, que EXCEDE TODO ENTENDIMENTO, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (Efésios 3: 19). Isso, porém, só acontecerá depois de termos sido “fortalecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior” (Efésios 3: 16) e ter Cristo habitando “pela fé nos nossos corações” (Efésios 3: 17). Para a igreja gozar dessa experiência, eu “me ponho de joelhos” (Efésios 3: 14).

Glauco Barreira Magalhães Filho

Teólogo (UMESP), Pós-Graduado em Teologia Histórica e Dogmática (FAERPI) e Doutor em Ministério (FTML). Diretor do Instituto Pietista de Cultura (IPC), da COMUNIE (Comunhão Universitária Evangélica) e professor universitário (UFC).

 

 

 

 

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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