Luis de Molina
1. As conclusões deste artigo são duas. Primeira: a ciência de Deus é causa das coisas [1]. Segunda: nada procede dela — a ciência de Deus — e, em consequência, não é causa em ato [2], salvo determinada pela vontade divina, através da qual, Deus decide e quer que algo exista. Em nosso Commentaria in primam D. Thomae partem(q. 25) examinamos se, ademais de ciência e vontade, devemos admitir que Deus possui uma potência executadora através da qual efetue imediatamente algo do mesmo modo que o artífice, ademais de sua arte e vontade, possui outra potência em virtude da qual executa a obra de sua arte.
2. As duas conclusões são claramente inferidas das Sagradas Escrituras. A primeira se infere das seguintes passagens: Provérbios, III, 19: «O Senhor criou a Terra com a sua sabedoria, estabilizou os céus com sua inteligência; os oceanos brotaram de sua sabedoria as nuvens se formaram de orvalho»; Salmos, CI, 24: «Quão magníficas são tuas obras, Senhor! Tudo fizeste sabiamente»; Sabedoria, VII, 21: « Tudo sei, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou [3]»; Jeremias, LI, 15: «Ele dispôs o mundo com sua sabedoria e com sua inteligência estendeu os céus». A segunda conclusão se infere das seguintes passagens: Epístola aos Efésios, I, 11: « faz tudo segundo a decisão de sua vontade»; Apocalipse, IV, 11: « Tu criaste tudo e por tua vontade tudo existiu e foi criado»; Gênesis, I, 3: « Disse Deus: Haja luz! E se fez a luz»; Salmos, XXXIII, 9: «Ele falou e foi assim; ordenou e se fez». Posto que Deus não mandou a nenhum outro executar, seu falar e sua ordem não significam outra coisa que a determinação e o decreto com conhecimento prévio de que tudo surgiu de maneira imediata.
3. Por esta razão, as duas conclusões são aprováveis, porque Deus realiza por meio de seu entendimento e vontade, como já temos demonstrado anteriormente, quer dizer, por meio da ciência que mostra o modo de realizar e dirige a vontade, pelo que também por meio da vontade que impulsiona sua execução. Portanto, como um artífice que tem uma ciência que faz com que seus artefatos, na medida em que lhe mostra o modo de realizar e o dirige a fazer a obra, pelo que também uma vontade, na medida em que determina a ciência e move à sua execução, assim também, Deus atua de modo semelhante.
4. Aqui devemos advertir que a ciência divina, no que tange a presente discussão, pode ser considerada de dois modos em relação às criaturas. Primeiro: na medida em que, com ela, Deus conhece que pode criar as criaturas e também que deve criá-las, seja para que existam, seja para acomodá-las a um ou outro fim; considerada deste modo, a ciência divina é natural e não livre e, ademais, antecederia ao ato e a determinação livre da vontade, pelo que Deus decide criá-las em um ou em outro momento. Segundo: na medida em que Deus, através dela, conhece que as criaturas vão existir em um momento determinado; considerada deste modo, a ciência divina não é natural, se não livre; e tampouco antecederia a determinação livre da vontade – pelo que Deus decide que as criaturas existam em um ou em outro momento, se não que, melhor, seria posterior a ela.
5. Diante disso, é fácil entender que a conclusão de Santo Tomás é verdadeira, se se considera a ciência divina segundo o primeiro modo e não conforme o segundo. Pois, considerada segundo o primeiro modo, a ciência divina dirigiria a vontade, realizando suas obras e lhe prescreveria o modo de realizar; ademais, dela se diz que é o cálculo reto das coisas factuais e, em consequência, possuiria o cálculo da arte, através do qual Deus modela tudo; por outra parte, antecederia a determinação livre da vontade divina e, graças a ela, esta se determinaria a realizar. Porém, considerada conforme o segundo modo, nem dirige a vontade, nem define seu modo de realizar — se não que se encontra entre os limites da pura contemplação — , nem antecede ao ato livre da vontade, de tal modo que possa determinar esta a realizar. A isto, acrescenta-se que, se por impossibilidade, este conhecimento não se desse em Deus, o conhecimento considerado conforme o primeiro modo bastaria, junto com a determinação livre da vontade, para que as coisas criadas emanassem de Deus.
6. Por tanto, devemos entender que a afirmação de Santo Agostinho ( De trinitate, lib. 15, cap. 133) citada por Santo Tomás (« Deus não conhece a todas as criaturas, não só as espirituais, se não também as corporais, porque existam,senão que existem porque Deus as conhece») se refere ao conhecimento e a
ciência divina considerados conforme o primeiro modo. Mas, quanto ao argumento de Orígenes ( In epistolam ad romanos, lib. 7, n. 84) que Santo Tomás oferece em primeiro lugar («Algo não sucede porque Deus saiba que vai acontecer, se não que, como vai acontecer, por ele Deus o conhece antes que aconteça»), certamente, sua primeira afirmação é de todo certa, porque a ciência divina pela qual Deus sabe que algo contingente vai se suceder, não é causa das coisas, como já temos dito; e quanto a segunda parte do argumento, se se entende bem, não é falsa, como explicaremos em nossos comentários ao artigo 13 da questão 145.
Em ínterim, daquilo que se ensina neste artigo, quisera que, ante tudo, se tenha bem presente que a ciência livre por meio da qual Deus sabe que alguns feitos contingentes vão ter lugar, não é causa das coisas, como já temos explicado aqui claramente. Agora, uma vez que muitos tem observado este ponto a propósito da presciência divina dos futuros contingentes, por ele, tem terminado sendo vítimas de alucinações sobremaneira perigosas.
Este texto é um fragmento da Concórdia do Livre Arbítrio do teólogo espanhol Luis de Molina. Este livro será publicado em breve pela Editora Sal Cultural
Tradução de Natã Campos
* Comentários ao artigo 8 da questão 14 da Summa Theologiae de Sto. Tomás de Aquino.
[1] Ciência: palavra de origem latina.: Scientia, significando conhecimento. Tem sua raiz em Sciere, que quer dizer conhecer,
saber.Provavelmente, no seu início tenha significado distinguir, separar coisas, de uma raiz indo-europeia Skei – cortar, separar. Nesse
contexto, significa o conhecimento próprio de Deus.
[2] Referência à teoria aristotélica de potência e ato, que Sto. Tomás de Aquino fez sua para explicar os movimentos metafísicos –
passagens de potência ao ato.
Em Da Geração e Corrupção Aristóteles diz que existem dois tipos de movimentos, o de geração(vir à ser) e corrupção(cessar de ser) e os
movimentos de associação e dissociação. Estes, são chamados de movimentos substanciais, do qual o leitor pode tomar como exemplo a
morte, considerando assim a alma humana como substância do homem. Aqueles movimentos – de associação e dissociação – como
movimentos acidentais, que sozinhos não alteram a substância.
[3] Usamo-nos da tradução encontrada na versão bíblica Bíblia de Jerusalém, edição de 1978. A referência de Luís de Molina ao mesmo
texto encontra-se adiante: “ O artífice de tudo, isto é, a sabedoria, me ensinou