Por Eduardo Vasconcellos

Houve um tempo em que falar de ética era algo consensual. Tanto no aspecto da necessidade implícita de haver um padrão de referência para o convívio social, algo que de algum modo normatizasse as relações sociais e interpessoais, quanto no aspecto de quais deveriam ser esses padrões – qual a fonte de informação que supriria o padrão, que o alimentaria, decodificando para o homem e para a sociedade em geral a regra ou a norma de conduta recomendada ou exigida.

Mas não só isso, quando nos referíamos a Ética na verdade buscávamos um referencial para a virtuosidade humana, um espaço onde se poderia idealizar o melhor modo de fazer as coisas, a melhor maneira de atingir a perfeição do caráter, direcionando-o à realização do Bem qualquer que fosse a esfera de atuação do indivíduo com o objetivo de alcançar a máxima felicidade humana.

É preciso reconhecer que a Filosofia sempre se aproximou – enquanto referencial teórico, e contribuiu para o desenvolvimento das noções de Ética. E, muitas vezes nos deparamos com filósofos honestos como Jacques Maritain, que reconheceu as limitações de seu campo. Segundo ele, “a Ética só fornece as regras da conduta humana na ordem natural, e em relação ao Fim último do homem tal qual seria se o homem tivesse por fim uma beatitude natural.” Maritain explica que a razão da limitação da Filosofia é por causa da ação divina na vida do homem:

“Ora, tendo de fato o homem, como fim último, um fim sobrenatural (Deus possuído não pelo conhecimento imperfeito da razão humana como tal, mas pela visão beatífica e deificante da essência divina) e devendo os seus atos ser regrados em relação a este fim sobrenatural e de maneira a conduzi-los a esse fim, a Ética filosófica é evidentemente insuficiente para ensinar-lhe tudo o que deve saber pra o bem agir. Deve ser completada e superelevada pelos ensinamentos da revelação.”[1]

O relativismo moral

Embora não seja necessário fazer muito esforço para constatar que vivemos tempos em que esse virtuosismo não é mais valorizado e que essa não é uma posição unânime, chama atenção o esforço de alguns filósofos contemporâneos, como Richard Rorty, que “não estão mais interessados em saber se precisamos ou não de metafísica, se temos ou não necessidade de teologia, se precisamos de uma representação do mundo que já tenha em si os ideais que gostaríamos de levar a termo”.[2]

Rorty apóia-se num princípio basilar da Ética, que é a obtenção da felicidade “pelo bem da sua alma”, e segue atrás desse ideal através da satisfação dos seus desejos. O problema começa no momento que seu argumento caminha no sentido de derrubar todo “fundamentalismo” religioso que o impede de “maximizar a satisfação abrangente do desejo”. Para ele, o fato da ética ter sido espiritualizada no ocidente é um obstáculo: “é preciso tornar os homens mais felizes, e não redimi-los, por que eles não são seres degradados”.

Rorty considera ainda que o limite para o avanço do seu desejo – aquele que satisfaria sua alma, não seria outro senão o “de outra criatura, que teria de expor uma questão em sentido contrário”. Na verdade, ele admite que o progresso moral não seja alcançado através de um caráter sublime, mas “consiste em ampliar a faixa de pessoas cujos desejos devem ser levados em conta”. Essa operação que exalta a quantidade em detrimento da qualidade requer que “qualquer desejo tenha o direito de ser realizado, desde que não interfira na realização dos outros desejos, e a dos que consideram que certas ações e certos desejos são intrinsecamente maus”. Ele questiona, então:

“como escolher entre os que acreditam que proibir a sodomia é tão absurdo quanto proibir o consumo de frutos do mar, e aqueles que, ao contrário, consideram um distúrbio na estrutura da existência humana?”[3]

Observe o leitor que a questão não se resume a uma escolha verdadeira entre o certo e o errado, duas posições antagônicas, mas a sutileza de usar duas instruções da lei mosaica – uma considerada como abominação aos olhos de Deus e outra, uma instrução sem maiores conseqüências, nivelando-as em grau de gravidade. Tenta-se na verdade, relativizar o pecado hediondo equiparando-o a uma sugestão de dieta alimentar.

Meu objetivo até aqui não foi realizar uma exposição profunda do pensamento de Rorty, mas acompanhar seu raciocínio até tornar evidente para nós a importância do tema que este ensaio escrito por Ray Dunning adquire em nossos dias. Há um movimento que relativiza as virtudes cristãs e quer, na verdade, tirá-las da vitrine, substituindo toda referencia ética e moral – em maior ou menor grau, por uma ideologia politicamente correta.

Como diz o filósofo Pondé:

“Hoje em dia, uma das coisas mais queridas do politicamente correto é afirmar que não existe natureza humana. O homem e a mulher seriam ‘construídos social e historicamente’. Vimos uma idéia semelhante a essa no campo da sexualidade chamada de teoria de gênero. A praga PC gosta dessa afirmação porque ela passa a idéia de que podemos melhorar (seja lá em que sentido melhorar) infinitamente intervindo ‘livremente’ em nós mesmos construindo seres humanos ‘livres’ de si mesmo. A raiz dessa crença também é a tentativa de superação da idéia de pecado como ‘DNA da natureza humana’ nas suas mais variadas formas.”[4]

Como se vê, não só alguns filósofos tem se pronunciado contra o conhecimento revelado através da Bíblia. A ideologia de gênero domina hoje grande parte dos departamentos de sociologia das universidades, onde o marxismo cultural tem se alastrado e cooptado professores para levar uma mensagem distorcida da realidade contemporânea aos alunos do Ensino Fundamental e Médio. E, ao invés da luta de classes sociais proposta no marxismo tradicional, a idéia sugerida e colocada em prática passa pela desconstrução das instituições cristãs tradicionais: casamento, família e paternidade.

Mas há outros personagens que também tem se pronunciado a favor de um afrouxamento moral, principalmente no que diz respeito a questões de relacionamentos sexuais e à cultura de morte – aborto e eutanásia. O teólogo Juan Cláudio Sanahuja identifica alguns organismos internacionais vinculados à ONU, como a OMS e a UNESCO, como promotores dessa secularização radical. Em seu livro Poder Global e Religião Universal, Sanahuja relaciona alguns itens que ele considera importantes na constituição de novos paradigmas éticos que estão surgindo. Vejamos quais são alguns deles:

  1. O paradigma do utilitarismo sentimental da maioria. O sentimento da maioria como base de toda decisão moral, o culto irracional dos desejos, a substituição da razão pelos sentimentos e desejos.
  2. O novo paradigma da saúde. Exclusão de milhões de pessoas do direito à vida e à saúde, privilégios a adultos saudáveis e produtivos, aborto sem restrições, eutanásia disfarçada, entre outros.
  3. Reinterpretação dos direitos humanos. Livre orientação sexual, identidade de gênero, direitos homo-afetivos como adoção, homofobia, a negação da transcendência e da ordem divina da criação.
  4. O novo paradigma da família. Reengenharia social anti-cristã, igualdade de gênero, destruição do matrimônio e das relações pai-filho/mãe-filho.

Esse é um embate intelectual e acadêmico e que provoca muitos desdobramentos práticos que afetam as famílias. Sanahuja diz:

“Estamos em meio a uma batalha da qual uma das frentes mais importantes é a semântica. Por exemplo, temos visto que o termo paternidade responsável, na boca de um político, segundo os códigos universalizados pelas Nações Unidas, não terá o mesmo significado contido nos documentos da Igreja. No linguajar de alguns parlamentares poderia significar , segundo as circunstâncias, desde a distribuição maciça de contraceptivos até mesmo a intenção oculta de promover o aborto.  O mesmo se poderia dizer da expressão violência contra a mulher ou mesmo de tortura, palavras que o comum das pessoas nem imagina que possam esconder uma referência ao suposto direito ao aborto e outras aberrações.”[5]

Uma ética com adjetivo provém da graça divina

Certamente que os últimos 20 anos se tornaram piores do que aqueles descritos por Barclay e destacado por Dunning: “Há mais de vinte anos William Barclay descreveu a ética geral:

Trinta anos atrás nunca alguém questionou verdadeiramente a ética cristã. Há trinta anos nunca alguém duvidou que o divórcio fosse infame; que filhos ilegítimos fossem um desastre; que a castidade fosse algo bom; que um dia de trabalho honesto fosse parte do dever de todo homem respeitável e responsável; que a honestidade deve ser parte da vida. Mas hoje, pela primeira vez na história, a ética cristã tem sido atacada por completo.[6]

Dunning não se furta ao discurso que defende a presença e a necessidade de padrões cristãos para esta sociedade secular adoecida. E justifica teologicamente quando explica que “o reconhecimento de que algo é certo ou errado não é trazido à experiência através de uma faculdade natural, mas mediante a atividade universal da graça preveniente”. Para ele, “é crucial informar a consciência com o conteúdo cristão”, que provém de Deus.

A partir do momento que o autor estabelece essa ação como fundamento, ele passa a introduzir o leitor nos ensinos de Wesley relativos à soteriologia, principalmente à distinção feita entre justificação e santificação, e à antropologia, no que diz respeito à imagem e semelhança de Deus na criação.  De acordo com Dunning, “obtendo essas observações teológicas como uma fundamentação, agora estamos prontos para olhar mais especificamente para o assunto ético, iniciando com algumas importantes distinções e conceitos necessários para o desenvolvimento de uma teologia ética”.

Mas a verdade é que o presente ensaio segue duas linhas paralelas. Uma nos leva a discussão conceitual sobre a ética; na outra temos uma exposição da teologia wesleyana feita por um de seus mais notáveis professores. O resultado é formidável, pois com muita habilidade e domínio do tema somos guiados, não deixando despercebidos nem os detalhes, nem suas implicações sociais e teológicas.

Apos longo percurso chegamos ao estabelecimento da Ética da Redenção e da Ética da Criação como requisito para o corpo de Cristo nos dias atuais. A primeira diz respeito a uma atitude que todo cristão deve ter diante daquilo que Deus já fez por ele. É a retribuição, e não só, trata-se, melhor, da obrigação daquele que compreendeu a vontade de Deus para sua vida. É algo que vem sempre depois da decisão, e se dá na oportunidade do crente manifestar seu amor a Deus e ao próximo. A Ética da Criação, nas palavras de Dunning, é uma “ética fundamentada na atividade criativa de Deus que se relaciona para a vida no mundo e que se refere a todas as pessoas, sejam elas redimidas ou não. Apesar disso ter uma base teológica, sua presença pode ser reconhecida através da experiência, mesmo quando sua base teísta é desconhecida ou não é reconhecida”.

A teologia wesleyana dá um aporte original ao tema pela sua interpretação peculiar das Escrituras no que diz respeito a Imago Dei, e a conclusão “que a imagem de Deus envolve um relacionamento quádruplo: com Deus, com os outros, com o planeta e consigo mesmo. A maioria dos estudiosos inclui apenas os três primeiros, mas a minoria, dentre os quais faço parte, enxerga o quarto relacionamento como um componente essencial dos três primeiros. Ou seja, a função de ‘si mesmo’ é o fator determinante se o relacionamento tríplice está no lugar ou fora do lugar.

Esse diferencial é fundamental para a compreensão daquilo que Deus requer de nós como cristãos e como Igreja. E também é um aporte na luta contra aqueles que têm se levantado para esvaziar o discurso cristão e sua importante contribuição a sociedade pois esta fundamentação teológica traz subsídios importantes. Por isso quero encorajar ao distinto leitor que estude este livro como um manual apologético que o ajudará muito a lidar com questões relativas à missão da Igreja como “coluna e firmeza da verdade” e no processo de discipulado dos nossos jovens e novos convertidos. E claro, como fundamento para sua edificação pessoal.

 

* Apresentação do Livro: Refletindo a Imagem Divina – Ética Cristã numa Perspectiva Wesleyana, de H. Ray Dunning. Tradução Vinicius Couto (Maceió: Editora Sal Cultural, 2015)

[1] Maritain, Jacques. Introdução Geral à Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1981, p.168
[2] Rorty, Richard. Uma Ética Laica. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.33
[3] Rorty, Richard. Uma Ética Laica. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.28
[4] Pondé, Luiz Felipe.Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo: Leya, 2012. p. 134
[5] Sanahuja,Juan Cláudio. Poder Global e Religião Universal. Campinas, SP: Ecclesiae, 2012, p. 15
[6] Barclay, William. Ethics in a Permissive Society. New York: Harper & Row, 1971, p. 13.

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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