Por Mateo Lelievre


O Antinomismo é – segundo a Enciclopédia de Ciências Religiosas –, “a teoria contrária ao princípio da lei”. Embora Jesus tenha declarado: “não cuides que vim destruir a lei ou os profetas; não vim ab-rogar, mas cumprir” (Mt 5.17), não tardou para que alguns cristãos, exagerando alguns textos das cartas do apóstolo Paulo, alegassem que a fé excluía a lei. Os reformadores que advogavam a salvação pela fé em oposição à salvação pelas obras se reservavam falar da lei com desprezo. Martinho Lutero, que era contrário a tais alegações, teceu duras críticas, dizendo: “não há mais nada que impeça a liberdade de expressão e se alguém quer ainda pôr algum tropeço a quem quer que seja, e mesmo constrangê-lo, em nome da lei, o tal não merece ser chamado de cristão”. O reformador mostrava-se indignado com tais apologistas, mas alguns de seus seguidores – sobretudo certo João Agrícola – simpatizavam com este movimento, declarando-se de antinomistas. “Libertinos! Adúlteros!…”, em outras palavras: “Pecadores”, praguejava Agrícola a seus opositores, “… Estão todos enganados, se pensam que estão no caminho da salvação”. E acrescentava: “Os que têm negociado com Moisés, devem ir ao inferno com ele”. Amsdorf, amigo e discípulo de Lutero, observava que as boas obras são nocivas à salvação. A Fórmula de Concórdia de 1577 condenou os antinomistas.

Enquanto Calvino mantinha-se prudentemente contrário aos erros antinomistas, seus seguidores, sobretudo na Inglaterra, adotaram os pontos de vistas mais extremos sobre a predestinação e seguiram o antinomismo. Para Wesley, o Calvinismo não devia ser seguido, pois representava um erro moral inaceitável. Calvino, mesmo sendo inegavelmente um autêntico cristão, não era visto com bons olhos por Lutero, que o conhecia como o Homem da Predestinação Absoluta e o Homem da Fogueira de Servet.

Para melhor compreensão deste assunto, remetemos a nossa obra: João Wesley sua vida e obra,[1] no capítulo sobre a história das cisões. Desde 1740, duas correntes doutrinárias se opunham: uma liderada por Armínio e os irmãos Wesley, o chamado Metodismo Arminiano e a outra liderada por Whitefild – seu maior expoente –, o Metodismo Calvinista. Ainda nesta obra, tratamos detalhadamente sobre a história da Controvérsia Calvinista, que estourou logo após a morte de Whitefield.[2] Contudo, devemos destacar aqui, dado ao espírito esclarecedor de Wesley, o ambiente onde essas ideias floresceram.

O impacto produzido pela conferência de 1770 nasceu de um documento que, respeitado às devidas proporções, merece ser destacado neste momento. Esta declaração doutrinária, redigida por Wesley,[3] já foi por nós publicada. Eis seu resumo:

Wesley declarou que os Metodistas “tinham se inclinado ao Calvinismo”, e que estavam todos errados ao admitirem que “não havia nada mais para se fazer concernente a Justificação”, ao passo que, para o verdadeiro arrependimento, segundo às Escrituras, era necessário “produzir frutos de arrependimento” (Mt 3.8).

A declaração insistia na importância de adicionar às obras – fé. Muitas expressões empregadas por Wesley, para alguns dos líderes calvinistas, soaram como heresias intoleráveis, especialmente para Lady Huntingdon, reputada como uma líder de grande destaque na Igreja.

“Uma antiga controvérsia reacendida…”, dizia Frédéric W. Macdonald, “… assemelhar-se-ia a um vulcão em erupção, que outrora adormecido em suas cinzas, agora suscitaria as intrigas de suas chamas”.[4] As chamas reacendidas do odium theologicum, naquele instante, eram intensas. Wesley foi tratado como herege, apóstata, de papista, predicados injuriosos, outrora servidos ao tempo da Reforma. Em resposta, Wesley redigiu uma comunicação escrita para se defender das acusações lançadas contra ele. Mas se alguns líderes se acalmam, outros se manifestam. Desponta uma nova “guerra dos sete anos”, onde as armas se não eram letais, não eram menos venenosas. Fletcher era um homem de caráter comedido e se mantinha longe de intrigas, mas ao perceber que o homem a quem ele reputava como um grande servo de Deus, que fora levantado para reavivar a igreja, ser tratado como um herege; não tinha dúvidas: levantar-se-ia como seu mais ardoroso defensor.

Inseriremos aqui, sem ser muito prolixo, a contundente resposta, feita por Fletcher, em defesa de seu grande amigo Wesley:

“Semelhantemente, se vós fosseis um Baraque, ordenado pelo Eterno, Deus de Israel, impeliríeis ao combate os filhos de Neftali e Zebulom; [5] Convocaríeis da Inglaterra e do País de Gales, o clérigo e os leigos, os anglicanos e os dissidentes, para se encontrarem em Bristol; Mas para quê esta grande expedição? Com o intuito de marchar como um só homem, não para atacar Sísera e suas carruagens de ferro, mas para investir contra um velho Calebe, que, sem se envolver em seus negócios, segue tranquilamente à conquista de Canaã! Oh! Não lho façais como Roma, temendo que os filhos da Inquisição sejam impedidos de se alegrarem!

Oh, homem! Já não temos assaz conflitos lá fora para ainda tomardes nosso tempo e nosso vigor? Deveríamos, também, tê-los interiormente? Tomar-se-ia ocasião para ferirem-se uns aos outros ao invés de nos servirmos mutuamente? Não há nada mais constrangedor do que um humilde servo de Cristo ser tratado perante o público como um redutível herege, e isso por intermédio de escritos, enviados pelos homens mais destacados do país e ratificados por homens de vossa classe e piedade? Não há nada mais ultrajante do que ver-se condenado por palavras que jamais disse, nem cogitou; de ver, enquanto ocupado em pregar a Jesus Cristo em outro lugar, [6] seus amigos excitados contra ele; seus inimigos exaltados e o fruto de seu ministério ameaçado de ser perdido. Ponha-se em seu lugar, senhor, e, compreenderás que a ferida é profunda e penetra até o âmago do ser.

Nosso Elias[7]subiu ao céu por derradeiro. Eliseu, com a cabeça calva, ainda permanece um pouco entre nós. Disputaremos, levantaremos contra ele acusações rancorosas? Os filhos dos profetas, seus rebentos em graça e em conhecimento, difamarão o respeitável profeta e seu árduo labor? Irão eles, enquanto veem-no seguir os rastros de seu irmão gritar-lhe: ‘sobe calvo!’, ou ainda, protestar-lhe: ‘sobe herege!’ – Oh, Jesus de Nazaré, tu que fostes rejeitado pelos homens, chamado de sedutor do povo, não permitas que o urso enfurecido da perseguição, saindo repentinamente da floresta, se lance sobre os filhos da discórdia e despedace-os”. [8]

 Esta impressionante defesa da pessoa e das doutrinas de Wesley causou um grande impacto no mundo religioso de então. O autor, respeitado pastor anglicano, mostrava-se um escritor habilidoso e apologista perspicaz.

Este estrangeiro, suíço de língua francesa, que era confundido com os pastores refugiados que nunca aprenderam o inglês, falava e escrevia como se fosse um autêntico londrino. Seu estilo tinha um charme característico e um vigor exuberante de causar inveja em qualquer inglês. Com grande mérito, Robert Southey, Wesliano convicto, grande intérprete literário e biógrafo respeitado de Wesley, critica a forma um pouco redundante de Fletcher escrever, mas acrescenta que “a abundância de imagens e a presença de palavras piedosas traem a origem francesa do escritor. Mas seu raciocínio é inventivo e claro; sua motivação para escrever é excelente, e, ver-se que se trata de um mestre que conhece profundamente o seu métier”.  Southey ainda diz: “Se em algum momento a verdadeira piedade cristã foi manifesta em escritos polêmicos, encontramos, nos de Fletcher de Medeley. A controvérsia teológica não conseguiu demover de seu caráter a verdadeira devoção. Este santo homem era um apologista hábil, respeitado e sincero”.[9]

Os escritos que Fletcher publicou sob o título de Checks to Antinomianism (Guerra contra o Antinomismo),[10]no decurso da Controvérsia Calvinista, em tese, não combatiam os ensinos de Calvino – já há algum tempo enfraquecidos e cuja doutrina da predestinação não atraía mais adeptos, mesmo em Genebra, onde Fletcher havia estudado –, e sim, o Antinomismo que, qual um fermento de dissolução, penetrava, agora, nas igrejas e ameaçava as sociedades metodistas. Nesses escritos, ele descrevia o estado de relaxamento moral e decadência religiosa em que as igrejas evangélicas de seu tempo se encontravam, e corajosamente, denunciava-as.

Como já visto na quarta edição de João Wesley, sua vida e obra, reiteramos, neste capítulo, que Fletcher, um pacificador, foi acidentalmente um apologista. Ele, na verdade, queria reconciliar os dois lados conflituosos e encontrar um ponto comum, onde pudesse reconciliá-los. Em 1777, ele publicou dois livros que tratavam dos seguintes temas: As Doutrinas da Graça e da Justiça Igualmente Essenciais ao Evangelho Puro. Este livro discorria sobre as divisões perniciosas entre os cristãos que ansiavam separar essas doutrinas. Também versava, introdutoriamente, à um plano de reconciliação entre os defensores de uma graça parcial, chamados de Calvinistas e os apologistas de uma justiça imparcial, denominados de Arminianos.

O segundo livro era dividido em três partes, onde ele expunha, inicialmente, o que ele chamava de Arminianismo Bíblico e o Calvinismo Bíblico, onde se buscava um meio de reconciliá-los, isto é, encontrar uma maneira de converter autênticos arminianos em bons calvinistas bíblicos, e autênticos calvinistas em bons arminianos bíblicos. A terceira parte propunha um Plano de Reconciliação.

Os temas desses livros demonstravam expressamente o objetivo do autor. Em outro livro intitulado O Retrato de São Paulo, escrito em françês, enquanto residia em Nyon, sua cidade natal, nos últimos anos de sua vida, ele retomou este assunto e defendeu firmemente a reconciliação entre Arminianos e Calvinistas, e, justamente na região onde Calvino havia vivido e publicado sua Institution de la Religion Chrétienne. Destarte, menos na Suíça, mas, sobretudo na Inglaterra, os cristãos não estavam amadurecidos o bastante para aceitar este novo caminho, idealizado por Fletcher.[11]

* Extraído do livro Teologia de John Wesley, Mateo Lelievre. , publicado pela Editora Sal Cultural, disponível aqui.

[1] João Wesley, sua vida e obra, parte II, capítulo 7.
[2] Ibid., parte IV, capítulo 18.
[3] Ibid., parte III, capítulo 17.
[4] F. W. MacDonald. Fletcher of Madeley, p. 108.
[5] Alusão a uma circular do Reverendo W. Shirley, que convidava os líderes calvinistas ingleses para uma conferência wesliana em Bristol, para uma possível retratação de Wesley. Esta convocação, no entanto, fracassou.
[6] Wesley estava na Irlanda, numa campanha evangelística (de 24 de março a 22 de julho de 1771), enquanto que W. Shirley lançava contra ele uma circular ofensiva.
[7] Whitefield, que morrera na América em 30 de setembro de 1770.
[8] Este primeiro livro de Fletcher respondeu a uma citação do Reverendo W. Shirley, sobrinho de lady Huntingdon.
[9] Robert Southey. A vida de Wesley, capítulo XXV.
[10] O título desses famosos tratados de Fletcher é quase intraduzível em francês. Ele significa échec (fracasso) ou frein (freio). A frase: guerra contra o antinomismo se aproxima mais do sentido original.
[11] Ver no apêndice um excerto deste livro escrito em francês, onde Fletcher se mostra um   predecessor da Aliança Evangélica.

 

Editora Sal Cultural - Coleção Grandes Temas da Teologia

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